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porto velho, sábado 25 de outubro de 2025
A gentileza é uma moeda social poderosa que regula interações, cria confiança e facilita cooperação em comunidades e organizações. Nem toda demonstração de cortesia é expressão de empatia; em muitos casos a gentileza funciona como estratégia relacional calculada para conduzir comportamentos alheios em benefício próprio. Essa ambivalência tem respaldo em pesquisas sobre inteligência emocional, teoria da troca social e gestão de impressões; juntas, essas áreas explicam por que cortesias aparentes às vezes visam criar dívida, reduzir vigilância e aumentar influência sobre os outros (Salovey & Mayer; Blau; Goffman). Entender quando a gentileza é autêntica exige atenção às motivações, ao padrão temporal do comportamento e à coerência entre discurso e ação.
A gentileza é, em sua essência, uma das virtudes mais celebradas e valorizadas nas interações humanas. Associada à empatia, à consideração pelo próximo e à capacidade de construir laços sociais harmoniosos, ela é frequentemente percebida como um pilar fundamental para a convivência pacífica e produtiva. No entanto, essa percepção intrinsecamente positiva pode, por vezes, mascarar uma realidade mais complexa e sombria. É uma questão de sobrevivência psicológica e humana questionar se todo comportamento gentil emana de uma intenção pura ou se, por trás de uma fachada de amabilidade excessiva, podem se esconder estratégias de manipulação social. A dualidade entre a "Gentileza" genuína e a exploração da "Gente lesa" emerge como um campo fértil para a análise crítica, onde a bondade aparente se torna uma ferramenta para obter vantagens sobre os outros, muitas vezes de maneira prejudicial e exploratória.
Gentileza instrumental
Três mecanismos teóricos ajudam a explicar a gentileza usada como estratégia: criação de obrigação recíproca, gestão de impressões favoráveis e exploração da regulação emocional alheia. A teoria da troca social descreve como favores geram expectativas de retribuição que podem ser cobradas posteriormente (Blau; Gouldner). A gestão de impressões mostra como elogios, disponibilidade e atitudes calorosas aumentam a credibilidade e reduzem a probabilidade de questionamento (Goffman; Leary). Pesquisas sobre inteligência emocional indicam que a habilidade de perceber e influenciar emoções (medida por instrumentos como o MSCEIT) pode ser usada tanto para apoio genuíno quanto para manipulação calculada (Mayer, Salovey & Caruso; Goleman).
Alguns marcadores distinguem gentileza autêntica de manipulação. A gentileza genuína tende a ser consistente, não condicional e muitas vezes anônima; gentileza instrumental costuma ser situacional, proporcional ao ganho possível e acompanhada de estratégias de persuasão conhecidas (Cialdini). Indicadores práticos apoiados pela literatura incluem: presença de pedidos encadeados após favores; elogios excessivos que visam elevar a autoridade do agente; e reações de pressão emocional quando limites são colocados (Ekman sobre engano; Cialdini sobre técnicas de influência). Estudos organizacionais mostram que comportamento de "favor" seletivo frequentemente acompanha favoritismo e abuso de poder, sinalizando uma motivação estratégica em vez de altruísta (Cropanzano; Tepper).
Consequências sociais e psicológicas para quem é tratado como “lesa”
Quando a gentileza é usada para explorar, surgem efeitos como esgotamento emocional, redução da autonomia decisória e erosão da confiança — fenômenos documentados em estudos de estresse ocupacional e justiça organizacional (Maslach; Greenberg). A experiência de reciprocidade forçada ou de favores com contrapartidas ocultas também produz confusão sobre intenções alheias e leva à hipervigilância, prejudicando relacionamentos futuros e a cooperação genuína (Batson sobre motivações pró‑sociais; Kramer sobre confiança).
Estratégias eficazes, apoiadas por pesquisa, incluem estabelecer limites claros, formalizar acordos quando apropriado e exigir reciprocidade explícita; treinar equipes para reconhecer sinais de favorecimento seletivo e desenvolver habilidades de assertividade e avaliação crítica (Lewin sobre mudança de comportamento; Mayer et al. sobre avaliação da inteligência emocional). Promover transparência organizacional e processos justos reduz espaços para que gentilezas instrumentais prosperem, preservando a confiança coletiva (Greenberg; Cropanzano).
Aprofundando a discussão, a inteligência emocional e social, portanto, não é intrinsecamente boa ou má; seu valor ético reside na intenção de quem a utiliza. Quando combinada com uma bússola moral sólida e um desejo genuíno de promover o bem-estar coletivo, a IE é uma força poderosa para o bem, fomentando a cooperação e a compreensão mútua. Contudo, na ausência de escrúpulos ou quando guiada por um egoísmo exacerbado, essas mesmas habilidades tornam-se instrumentos de dominação. Um sorriso cativante, palavras de apoio cuidadosamente escolhidas e gestos de aparente generosidade podem ser calculados para criar uma dívida emocional, para extrair informações ou para posicionar o manipulador em uma situação de poder, tudo sob o véu de uma "gentileza" que, na verdade, é uma tática fria e calculista.
Dualidade entre gentileza genuína e manipulação social
Gentileza e manipulação não são mutuamente exclusivas, e diferenciar ambas requer observação crítica e coragem para impor limites. Defender relações baseadas em respeito mútuo e transparência preserva tanto a bondade genuína quanto a dignidade de quem interage. Ser cauteloso com cortesias que exigem contrapartidas ocultas é uma postura racional que preserva redes sociais e profissionais.
É quando propomos o trocadilho, na função de conceito, da "Gente lesa": aqueles que, por sua natureza confiante, sua boa-fé ou sua própria necessidade de conexão e aceitação, tornam-se alvos fáceis para os manipuladores. A confiança, que deveria ser a base de qualquer relação autêntica, é traiçoeiramente explorada. Em contextos pessoais, isso pode se manifestar em amizades ou relacionamentos amorosos onde um parceiro se mostra excessivamente "gentil" para isolar o outro, minar sua autoestima ou controlar suas decisões financeiras. No ambiente profissional, um colega pode usar a bajulação e a aparente solicitude para sobrecarregar os outros com trabalho, sabotar reputações ou ascender na carreira às custas da ingenuidade alheia. A "Gente lesa" é, em essência, a vítima da gentileza distorcida, pagando um preço emocional, material ou psicológico por sua incapacidade de discernir a verdadeira intenção por trás da máscara.
A distinção entre a gentileza como uma expressão autêntica de cuidado e a gentileza como um meio para um fim egoísta é fundamentalmente uma questão ética. A manipulação, por sua natureza, desrespeita a autonomia do outro, tratando-o como um objeto ou ferramenta, e não como um fim em si mesmo (Kant, 1785). A reflexão filosófica nos convida a questionar a moralidade por trás das ações, independentemente de sua aparência superficial.
Embora Daniel Goleman tenha popularizado a Inteligência Emocional (IE) como um conjunto de habilidades benéficas para o sucesso pessoal e profissional (Goleman, 1995), a análise crítica revela que a IE, por si só, é uma ferramenta neutra. Sua aplicação depende da intenção do indivíduo. A capacidade de reconhecer, entender e gerenciar emoções (próprias e alheias) pode ser usada para construir pontes e fomentar a cooperação, mas também para explorar vulnerabilidades. Um manipulador com alta IE pode identificar os pontos fracos emocionais de alguém e usar a gentileza direcionada para explorá-los. A questão ética surge quando a IE é dissociada da empatia genuína e da consideração pelo outro. A ausência de uma ética da alteridade (Lévinas, 1969), que prioriza o outro, transforma a IE em um instrumento de poder, condenando a assertividade ao buraco da muralha das bolhas e rejeição. Quando é absolutamente necessário ser assertivo, como princípio de transparência e ética profissional.
Ambiente Acadêmico tem “gente lesa”?.
Em ambientes universitários, as relações de poder, os recursos limitados e as expectativas acadêmicas criam um terreno fértil para que a gentileza administrativa seja usada como ferramenta de influência. Quando essa cortesia institucional não é acompanhada de transparência e critérios objetivos, ela pode se transformar em instrumento de favorecimento, gerando situações em que estudantes e servidores se tornam “gente lesa”.
Exemplos práticos dessa dinâmica aparecem quando programas de apoio, auxílios estudantis ou chamadas internas são conduzidos com comunicação vaga, critérios informais ou decisões pouco documentadas. Nesses casos, a gentileza deixa de ser um gesto ético e passa a funcionar como moeda de troca, abrindo espaço para pagamentos morais implícitos, favores seletivos e pressões sutis por retribuição.
Na Universidade Federal de Rondônia, como em outras instituições públicas, é comum a veiculação de editais, convocatórias e programas de auxílio. No entanto, quando esses processos não são acompanhados de regras claras e mecanismos de controle, a boa intenção pode ser convertida em estratégia de coação. A ausência de critérios objetivos favorece relações assimétricas e compromete a confiança institucional.
Por isso, a cortesia administrativa deve ser traduzida em práticas éticas e públicas. A implementação de mecanismos de prestação de contas, canais de denúncia e critérios transparentes garante que a gentileza não seja usada como disfarce para manipulação, mas como expressão legítima de cuidado com a comunidade acadêmica.
Preservar a equidade e a autonomia universitária exige que a gentileza seja acompanhada de responsabilidade. Só assim será possível evitar que a cortesia institucional se torne uma armadilha relacional, onde o que parece acolhimento esconde relações de dependência e favorecimento.
Saiba Mais. Hoje somente boa leitura.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Século IV a.C. Diversas traduções.
BOURDIEU, P. The forms of capital. In: RICHARDSON, J. (Ed.). Handbook of Theory and Research for the Sociology of Education. Greenwood, 1986. p. 241–258.
CIALDINI, R. B. Influence: The Psychology of Persuasion. New York: William Morrow, 1984.
GOLEMAN, D. Emotional Intelligence: Why It Can Matter More Than IQ. New York: Bantam Books, 1995.
HOMANS, G. C. Social Behavior: Its Elementary Forms. New York: Harcourt, Brace & World, 1961.
JONASON, P. K.; WEBSTER, G. D. The Dirty Dozen: A concise measure of the Dark Triad. Psychological Assessment, v. 22, n. 2, p. 420–432, 2010.
KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. 1785. Diversas traduções.
LÉVINAS, E. Totality and Infinity: An Essay on Exteriority. Pittsburgh: Duquesne University Press, 1969.
PAULHUS, D. L.; WILLIAMS, K. M. The Dark Triad of personality: Narcissism, Machiavellianism, and psychopathy. Journal of Research in Personality, v. 36, n. 6, p. 556–563, 2002.