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porto velho, sábado 8 de novembro de 2025
A CRIMINALIZAÇÃO DO EXERCÍCIO PROFISSIONAL DA ADVOCACIA E OS LIMITES DA ATUAÇÃO PENAL: REFLEXÕES A PARTIR DE UM CASO CONCRETO
Por Dr. Fadricio Santos
A expansão da persecução penal sobre conflitos originariamente cíveis, sobretudo quando envolvem honorários advocatícios e divergências familiares em inventários, tem se tornado fenômeno crescente e preocupante. A advocacia, enquanto função essencial à administração da Justiça (CF/88, art. 133), não pode ser instrumentada como alvo preferencial de criminalizações precipitadas, especialmente quando inexistem elementos mínimos de dolo ou prejuízo patrimonial.
No caso examinado, o processo penal instaurado contra advogado derivou diretamente de uma disputa civil sobre repasse de valores de alvará judicial, na qual os herdeiros recusaram-se a receber a quantia que lhes era devida enquanto não fossem também repassados os honorários contratuais do profissional. A persecução penal foi utilizada como estratégia de pressão, antes mesmo de esgotadas vias de diálogo, notificação ou solução negocial.
Esse movimento levanta debate essencial: quando a via criminal ultrapassa seu papel constitucional e passa a operar como mecanismo de coerção negocial?
Da Persecutio Penal Prematura e o Uso da Notícia-Crime como Ferramenta de Pressão
A cronologia dos fatos demonstra que a notícia-crime foi a primeira reação dos herdeiros — e não a última. Não houve tentativa prévia de conciliação ou discussão contratual. Em menos de duas semanas após o primeiro contato do novo advogado da família, o boletim de ocorrência foi registrado.
Esse dado revela ausência de animus de diálogo. Em vez disso, evidencia instrumentalização do processo penal como meio de:
• invalidar honorários contratualmente devidos;
• pressionar por acordo mais vantajoso;
• transformar conflito civil em acusação criminal.
A doutrina e a jurisprudência, entretanto, são uníssonas ao afirmar que o Direito Penal é ultima ratio, devendo intervir apenas diante de efetiva lesão jurídica relevante e intenção dolosa comprovada.
A Ausência de Dolo e a Prova da Boa-Fé Objetiva
O delito de apropriação indébita, tipificado no art. 168 do CP, exige animus rem sibi habendi, ou seja, a vontade de assenhorear-se definitivamente da coisa alheia. Tal elemento subjetivo, porém, não se compatibiliza com a conduta analisada. Conforme demonstrado no processo:
• O advogado buscou contato com os clientes para repasse dos valores;
• Quando houve contestação, se prontificou a devolver os 70% devidos;
• Diante da recusa dos herdeiros, optou por pagar o valor integral corrigido, abrindo mão dos seus próprios honorários.
Ou seja, não apenas não houve prejuízo, como os herdeiros receberam **montante superior ao levantado judicialmente.
Em termos objetivos: não há apropriação onde não há vantagem ilícita e onde o suposto “lesado” experimenta benefício financeiro.
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Sobre a Acusação de Uso de Documento Falso: Entre a Materialidade e a Relevância
Jurídica
A imputação relativa ao art. 304 do CP também se mostra inviável, sob três fundamentos:
Ausência de prova pericial grafotécnica, indispensável quando a falsidade não é evidente.
Não comprovação de autoria ou domínio do fato, já que o documento integrou conjunto recebido por subestabelecimento.
Inexistência de potencialidade lesiva, pois a declaração de pobreza era juridicamente inócua para o procedimento em que foi juntada.
A jurisprudência recente do STJ reconhece que não há crime quando o documento é incapaz de produzir efeitos lesivos relevantes, configurando
atipicidade material.
A Relevância Institucional do Caso: Defesa da Advocacia como Garantia Democrática
O processo analisado deixa nítido que o risco não é individual, mas institucional.
Sempre que divergências contratuais com advogados forem automaticamente transformadas em imputações criminais, abre-se precedente perigoso:
• Intimidação profissional;
• Insegurança jurídica na relação advogado-cliente;
• Judicialização desproporcional das relações privadas;
• Enfraquecimento da garantia constitucional da ampla defesa.
A advocacia não pode ser criminalizada por exercer sua função, nem pode ser coagida a renunciar a direitos legais sob ameaça penal.
O caso examinado reafirma premissas fundamentais do Direito
Penal democrático:
• Sem dolo, não há crime;
• Sem prejuízo, não há tipicidade material;
• Sem prova pericial, não há materialidade;
• Sem potencialidade lesiva, não há relevância penal.
E, principalmente:
A persecução penal não pode substituir o diálogo, a negociação contratual ou a via cível.
Quando o Direito Penal é utilizado como arma de coerção, não se protege a vítima. Corrompe-se o sistema de justiça.