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    porto velho, sábado 8 de novembro de 2025

A criminalização do exercício profissional da advocacia e os limites da atuação penal - Reflexões a partir de um caso concreto


Por Dr. Fadrício Santos

08/11/2025 08:33:20 - Atualizado

A CRIMINALIZAÇÃO DO EXERCÍCIO PROFISSIONAL DA ADVOCACIA E OS LIMITES DA ATUAÇÃO PENAL: REFLEXÕES A PARTIR DE UM CASO CONCRETO

Por Dr. Fadricio Santos

A expansão da persecução penal sobre conflitos originariamente cíveis, sobretudo quando envolvem honorários advocatícios e divergências familiares em inventários, tem se tornado fenômeno crescente e preocupante. A advocacia, enquanto função essencial à administração da Justiça (CF/88, art. 133), não pode ser instrumentada como alvo preferencial de criminalizações precipitadas, especialmente quando inexistem elementos mínimos de dolo ou prejuízo patrimonial.

No caso examinado, o processo penal instaurado contra advogado derivou diretamente de uma disputa civil sobre repasse de valores de alvará judicial, na qual os herdeiros recusaram-se a receber a quantia que lhes era devida enquanto não fossem também repassados os honorários contratuais do profissional. A persecução penal foi utilizada como estratégia de pressão, antes mesmo de esgotadas vias de diálogo, notificação ou solução negocial.

Esse movimento levanta debate essencial: quando a via criminal ultrapassa seu papel constitucional e passa a operar como mecanismo de coerção negocial?

Da Persecutio Penal Prematura e o Uso da Notícia-Crime como Ferramenta de Pressão

A cronologia dos fatos demonstra que a notícia-crime foi a primeira reação dos herdeiros — e não a última. Não houve tentativa prévia de conciliação ou discussão contratual. Em menos de duas semanas após o primeiro contato do novo advogado da família, o boletim de ocorrência foi registrado.

Esse dado revela ausência de animus de diálogo. Em vez disso, evidencia instrumentalização do processo penal como meio de:

• invalidar honorários contratualmente devidos;

• pressionar por acordo mais vantajoso;

• transformar conflito civil em acusação criminal.

A doutrina e a jurisprudência, entretanto, são uníssonas ao afirmar que o Direito Penal é ultima ratio, devendo intervir apenas diante de efetiva lesão jurídica relevante e intenção dolosa comprovada.

A Ausência de Dolo e a Prova da Boa-Fé Objetiva

O delito de apropriação indébita, tipificado no art. 168 do CP, exige animus rem sibi habendi, ou seja, a vontade de assenhorear-se definitivamente da coisa alheia. Tal elemento subjetivo, porém, não se compatibiliza com a conduta analisada. Conforme demonstrado no processo:

• O advogado buscou contato com os clientes para repasse dos valores;

• Quando houve contestação, se prontificou a devolver os 70% devidos;

• Diante da recusa dos herdeiros, optou por pagar o valor integral corrigido, abrindo mão dos seus próprios honorários.

Ou seja, não apenas não houve prejuízo, como os herdeiros receberam **montante superior ao levantado judicialmente.

Em termos objetivos: não há apropriação onde não há vantagem ilícita e onde o suposto “lesado” experimenta benefício financeiro.

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Sobre a Acusação de Uso de Documento Falso: Entre a Materialidade e a Relevância

Jurídica

A imputação relativa ao art. 304 do CP também se mostra inviável, sob três fundamentos:

Ausência de prova pericial grafotécnica, indispensável quando a falsidade não é evidente.

Não comprovação de autoria ou domínio do fato, já que o documento integrou conjunto recebido por subestabelecimento.

Inexistência de potencialidade lesiva, pois a declaração de pobreza era juridicamente inócua para o procedimento em que foi juntada.

A jurisprudência recente do STJ reconhece que não há crime quando o documento é incapaz de produzir efeitos lesivos relevantes, configurando

atipicidade material.

A Relevância Institucional do Caso: Defesa da Advocacia como Garantia Democrática

O processo analisado deixa nítido que o risco não é individual, mas institucional.

Sempre que divergências contratuais com advogados forem automaticamente transformadas em imputações criminais, abre-se precedente perigoso:

• Intimidação profissional;

• Insegurança jurídica na relação advogado-cliente;

• Judicialização desproporcional das relações privadas;

• Enfraquecimento da garantia constitucional da ampla defesa.

A advocacia não pode ser criminalizada por exercer sua função, nem pode ser coagida a renunciar a direitos legais sob ameaça penal.

O caso examinado reafirma premissas fundamentais do Direito

Penal democrático:

• Sem dolo, não há crime;

• Sem prejuízo, não há tipicidade material;

• Sem prova pericial, não há materialidade;

• Sem potencialidade lesiva, não há relevância penal.

E, principalmente:

A persecução penal não pode substituir o diálogo, a negociação contratual ou a via cível.

Quando o Direito Penal é utilizado como arma de coerção, não se protege a vítima. Corrompe-se o sistema de justiça.


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