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porto velho, segunda-feira 17 de novembro de 2025
1. A encruzilhada entre força política e força da lei
A condenação de Jair Messias Bolsonaro pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, fixando pena de 27 anos e 3 meses de prisão em regime inicial fechado, é um divisor de águas na história democrática brasileira. Bolsonaro, hoje com 70 anos de idade, reúne uma combinação incomum: ex-presidente da República, liderança política polarizadora e forte capacidade de mobilização social. Nesse contexto, o país é confrontado com uma pergunta crucial: as instituições conseguirão aplicar a lei penal com a mesma rigidez que aplicam ao cidadão comum, mesmo quando o réu é um exchefe de Estado com enorme capital político? Essa tensão entre a tecnicidade da norma e o peso político do condenado é o ponto central deste debate.
2. Em que estágio está o processo: o que falta para o trânsito em julgado
Embora a pena já esteja integralmente fixada, ainda não houve trânsito em julgado. A Primeira Turma do STF já rejeitou os primeiros embargos de declaração da defesa, mas o processo aguarda a publicação do acórdão que consolida o julgamento. Somente após essa publicação é que se abrirá o prazo para um último recurso interno, geralmente novos embargos de declaração, de alcance limitado. Apenas depois do julgamento desse último recurso, e não havendo mais meios impugnativos viáveis, é que o STF poderá declarar o trânsito em julgado. Enquanto isso não ocorre, não se expede guia de recolhimento, não se inicia a execução penal e não se decide, em sentido estrito, o local de cumprimento da pena. O que vigora hoje é uma prisão domiciliar cautelar, distinta do cumprimento da pena definitiva.
3. O que diz a LEP: a resposta jurídica fria e objetiva
Do ponto de vista estrito da legalidade, o caminho é claro. A Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84) determina que a execução da pena depende de sentença condenatória transitada em julgado, quando então o juiz da execução emite a guia de recolhimento (art. 105). O Código Penal, por sua vez, estabelece que penas de reclusão superiores a oito anos se iniciam, como regra, em regime fechado (art. 33). Nesse cenário, a condenação de Bolsonaro, com pena elevada e regime fechado já fixado, aponta para o cumprimento em estabelecimento prisional compatível, com as peculiaridades de segurança decorrentes do fato de ser ex-presidente. A prisão domiciliar como forma de cumprimento de pena, prevista no art. 117 da LEP, é exceção voltada sobretudo ao regime aberto ou a situações extraordinárias (idosos, doentes graves, hipóteses humanitárias), e não se aplica de modo automático a quem inicia a pena em regime fechado.
4. A política tenta reescrever o que a lei não diz
É nesse ponto que a política tenta entrar pela porta dos fundos do sistema penal. Bolsonaro não é apenas um condenado: é símbolo de um projeto político, com base militante mobilizável e narrativa consolidada de “perseguição” institucional. Dentro desse contexto, já surgem análises e especulações de que, por “razões de estabilidade”, “risco de convulsão social” ou “segurança pessoal”, o Estado poderia optar por um cumprimento de pena em casa, sob o rótulo de medida excepcional. Acontece que esse tipo de solução não encontra respaldo direto na LEP, tampouco nos critérios tradicionais da jurisprudência para concessão de prisão domiciliar a condenados em regime fechado. Se a escolha pelo domiciliar for motivada essencialmente por cálculo político, o recado implícito será devastador: quanto maior a força política do réu, menor o peso concreto da pena. Isso não apenas distorce o sistema, como cria precedente para futuras lideranças.
5. Bolsonaro pode cumprir a pena em casa? Juridicamente, não; politicamente, talvez
Pela lógica do direito positivo, o quadro é relativamente simples:
▪ pena alta;
▪ regime fechado;
▪ regra de início em estabelecimento prisional;
▪ prisão domiciliar excepcional, condicionada a critérios rigorosos (idade + situação concreta, doença grave, impossibilidade estrutural etc.).
Assim, não há qualquer direito automático de Bolsonaro ao cumprimento da pena em sua casa. A idade de 70 anos é um elemento relevante, mas não autossuficiente; ela não apaga a exigência de regime fechado e não converte, por si só, uma sentença em cumprimento domiciliar. No entanto, sob a ótica política, o cenário é menos previsível: há temor de protestos, risco de vitimização política, preocupação com a segurança física do ex-presidente e receio de que sua prisão em presídio se torne catalisadora de crises. Esses fatores podem pressionar o sistema a adotar soluções criativas ou atípicas. Se isso ocorrer, não será por força da LEP, mas por força da conjuntura.
6. O espelho do cárcere brasileiro: milhares em situação igual ou pior
Qualquer privilégio a Bolsonaro precisa ser confrontado com o retrato do cárcere brasileiro. Dados recentes apontam que o Brasil tem cerca de 909 mil pessoas sob custódia penal, somando presos em estabelecimentos prisionais e pessoas em prisão domiciliar ou monitoramento eletrônico; desse total, aproximadamente 670 mil se encontram efetivamente em presídios e unidades similares, e mais de 235 mil em situação de prisão domiciliar ou regimes alternativos, o que nos mantém entre as maiores populações carcerárias do mundo. Estudos indicam ainda que a população carcerária é marcada por seletividade social: cerca de 64–66% dos presos são pessoas negras ou pardas e de baixa renda, evidenciando o viés estrutural do sistema. Não se trata de um cárcere excepcional para poucos, mas de uma massa encarcerada que concentra, em regra, os mais vulneráveis.
Dentro desse universo, há milhares de pessoas com características tão graves quanto, ou mais graves do que as de Bolsonaro, sobretudo quando se olha para idade e saúde. Estudos mostram que os idosos privados de liberdade cresceram mais de nove vezes em 18 anos, alcançando cerca de 12,4 mil pessoas idosas presas em 2023, o que representa aproximadamente 1,9% da população prisional, com estimativas de que menos de 3% dos presos tenham mais de 60 anos. Além disso, pesquisas de saúde prisional indicam que até metade dos presos apresenta alguma doença crônica, com alta incidência de hipertensão, diabetes, tuberculose e outras enfermidades graves, e risco de adoecimento e morte várias vezes superior ao da população em liberdade. Em outras palavras: se o critério para domiciliar for idade e risco à saúde, há dezenas de milhares de presos com argumentos tão fortes quanto ou mais robustos que os de Bolsonaro.
A conclusão lógica é incômoda, mas inevitável: se o sistema flexibilizar a execução da pena de Bolsonaro com base em critérios de idade, saúde ou segurança pessoal, sem fundamentação absolutamente singular, ele estará, em coerência, obrigado a olhar para dentro de seus presídios e reconhecer que milhares de presos em condições iguais ou piores também mereceriam reavaliação. A partir do momento em que se abre a porta da exceção para um líder político, torna-se moral e juridicamente impossível ignorar idosos enfermos, presos provisórios esquecidos, pessoas com doenças graves e situações de ilegalidade flagrante na população carcerária em geral.
7. Mutirão carcerário nacional: uma consequência lógica da coerência institucional
Esse raciocínio conduz a uma consequência prática: qualquer afrouxamento para Bolsonaro, sob justificativa humanitária ou estrutural, pressupõe, por coerência, a deflagração de um verdadeiro mutirão carcerário nacional. Não seriam mais suficientes revisões pontuais; seria necessário um esforço coordenado por CNJ, OAB, Defensorias, Ministério Público e terceiro setor para reexaminar milhares de casos à luz dos mesmos critérios. O próprio Conselho Nacional de Justiça tem histórico nessa frente: desde 2008 realiza mutirões carcerários para revisar prisões ilegais, benefícios não apreciados e distorções na execução penal, justamente porque reconhece as falhas crônicas do sistema. Em 2024, por exemplo, o CNJ chegou a editar Portaria para organizar um Mutirão Processual Penal em todos os tribunais, reforçando que esse tipo de atuação é política pública institucionalizada, não mera retórica.
Diante disso, se a pena de um ex-presidente for, na prática, convertida em permanência domiciliar sob argumentos humanitários, OAB, CNJ e organizações de direitos humanos terão base factual e moral para exigir o mesmo olhar para todo o sistema prisional. Seria inconcebível aceitar que o Brasil se mobilize institucionalmente para proteger a integridade de um réu ilustre, enquanto idosos pobres, doentes e esquecidos permanecem em presídios superlotados, sem qualquer revisão séria de sua situação. A coerência jurídica demandaria um mutirão carcerário robusto, com revisão de prisões preventivas prolongadas, concessão de benefícios atrasados, avaliação de prisão domiciliar para idosos e enfermos e correção de ilegalidades históricas. Caso contrário, a mensagem seria cristalina: o mutirão existe, na prática, apenas quando o réu tem nome e sobrenome com peso eleitoral.
8. O impacto para a confiança nas leis: a ferida institucional mais profunda
A forma como o caso Bolsonaro for conduzido na fase de execução penal terá efeitos que extrapolam sua biografia política e alcançam a própria crença da população na Justiça. Se o ex-presidente terminar cumprindo a maior parte de sua pena em casa, por arranjos de conveniência política e sem singularidade jurídica robusta, a percepção social será inevitável: para o cidadão comum, cela superlotada; para o líder político, conforto doméstico. Isso reforça a sensação de seletividade e transforma a máxima “ninguém está acima da lei” em mero slogan esvaziado. Por outro lado, se a lei for aplicada com rigor, em presídio adequado, sem espetacularização e com transparência, haverá narrativa de perseguição entre seus apoiadores, mas também um sinal claro de que, ao menos neste capítulo, as instituições optaram por priorizar a igualdade jurídica em detrimento do cálculo político.
9. Conclusão: Bolsonaro não venceu a lei — mas ainda testará a força do sistema
Até aqui, Bolsonaro não venceu a lei: foi condenado, teve recursos relevantes rejeitados e caminha para o trânsito em julgado de uma pena alta, em regime fechado, com efeitos profundos em sua biografia e no cenário político. O ponto decisivo que resta é saber onde e como essa pena será cumprida se o sistema seguir a trilha da LEP, a resposta é presídio, com as cautelas devidas. Se optar pela exceção política, a resposta poderá ser a casa e, nesse caso, a coerência exigirá um olhar igualmente generoso para os demais presos do país, sob pena de institucionalizar um duplo padrão intolerável.
Em última análise, esse caso dirá menos sobre a pessoa de Jair Bolsonaro e mais sobre o próprio Brasil: somos um país de leis que valem para todos, ou de exceções feitas para poucos? A resposta, que surgirá da forma de execução dessa condenação, será um espelho implacável da maturidade ou da fragilidade de nossas instituições.