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porto velho, sexta-feira 24 de janeiro de 2025
No conto "A Carteira", Machado de Assis narra o dilema moral de Honório, um advogado que, apesar de enfrentar sérias dificuldades financeiras, decide devolver uma carteira cheia de dinheiro ao dono, Gustavo, um amigo próximo. Contudo, seu gesto de honestidade é recebido com ingratidão e desconfiança.
Como a vida imita a arte - ou a arte imita a vida? - em 2023, um motorista autônomo de Palmas/TO viveu uma situação similar, mas com um desfecho diferente: após devolver imediatamente R$ 131 milhões que haviam sido transferidos por engano à sua conta, ele resolveu cobrar do banco uma "recompensa" pela devolução do montante.
Na ação judicial, o motorista pede uma recompensa de 10% sobre o valor devolvido, ou seja, a bagatela aproximada de R$ 13 milhões. Ele afirma que o banco sequer "agradeceu" pela devolução e que o gerente da instituição financeira chegou a ameaçá-lo, exigindo a devolução imediata do valor.
Ainda, alegou que devido à transferência, sua conta migrou para a categoria VIP, mesmo sem seu consentimento, e o valor de R$ 70, mensais, passou a ser cobrado.
Segundo o motorista, o erro teve grande impacto em sua vida, e o caso atraiu a imprensa para sua residência, gerando "desconforto e pressão psicológica".
Além da recompensa, ele requer indenização por danos morais de R$ 150 mil, devido à exposição sofrida.
Processo: 0030429-44.2024.8.27.2729
Achado não é roubado
No Código Civil brasileiro, a "descoberta" é tratada especificamente no art. 1.233. A norma estabelece os direitos sobre algo que é encontrado por alguém, desde que a descoberta não tenha dono conhecido.
Segundo o dispositivo, se uma pessoa encontrar algo que não possui proprietário conhecido (como objetos perdidos ou abandonados), ela tem a obrigação de entregá-lo à autoridade competente para a tomada das providências legais.
Caso o objeto encontrado não seja reivindicado no prazo legal, o descobridor poderá ser reconhecido como proprietário, respeitando as normas aplicáveis.
O código diferencia a "descoberta", do "achado de tesouro":
Achado de tesouro (art. 1.264): refere-se a bens de valor escondidos ou enterrados, cujo dono é desconhecido, e estabelece que o descobridor divide o valor com o proprietário do imóvel onde foi encontrado.
Descoberta (art. 1.233): foca em bens sem proprietário conhecido, sem envolver tesouros ocultos ou enterrados.
Já o art. 1.234 do CC prevê que o descobridor tem direito a uma recompensa de, no mínimo, 5% do valor do bem encontrado, a ser paga pelo proprietário ou pela pessoa que reivindicar o objeto.
Na ação judicial movida pelo motorista, a defesa sustenta o direito à recompensa por meio de analogia com a tecnologia, argumentando que o valor recebido na conta foi, de certa forma, "encontrado", porém em um ambiente virtual. Alega ainda que o CC, promulgado em 2002, não contemplava situações tecnológicas avançadas como a presente.
Obras de arte
Dois casos envolvendo pessoas que encontraram "obras de arte" e pediram recompensa destacam-se na jurisprudência do STJ e do TJ/SP.
A 2ª turma do STJ, confirmando decisões de instâncias inferiores, negou indenização a um trabalhador que pedia recompensa por descobrir obra de arte perdida no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. A tela, intitulada "A Poesia e o Amor Afastando a Virtude do Vício", foi pintada por Eliseu Visconti e considerada desaparecida desde a década de 1930.
O trabalhador alegou que, durante as obras de restauração do teatro, encontrou a obra em um local de difícil acesso, no entreforro do edifício, utilizando seu celular como lanterna para fotografar o achado. A descoberta foi amplamente divulgada pela mídia, com estimativas que atribuíam à pintura um valor entre 40 e 60 milhões de reais.
Ele pleiteou uma recompensa equivalente a pelo menos 5% do valor da obra, argumentando que esta estava "perdida" e que ele teria assumido riscos ao localizá-la. No entanto, o pedido foi julgado improcedente em 1ª instância, com confirmação pelo TJ/RJ e, posteriormente, pelo STJ.
Na análise do recurso especial, o relator, ministro Humberto Martins, destacou que "a obra estava dentro do domínio do próprio Theatro Municipal, pertencente à parte ré".
Conforme a decisão, o achado ocorreu durante os trabalhos de restauração realizados por uma empresa contratada pelo teatro, o que configurava a obra como de propriedade do Theatro Municipal, não atendendo aos requisitos legais para o pagamento de recompensa.
Ainda, o ministro enfatizou que "não foi o autor quem 'descobriu' a obra, mas sim o próprio Teatro Municipal durante o processo de restauração".
Assim, concluiu que, independentemente de quem estivesse encarregado das reformas, a obra seria inevitavelmente localizada.
Também rejeitou o argumento de que o trabalhador teria enfrentado riscos significativos ao encontrar a obra, considerando que não havia provas de perigo à integridade física do autor ou qualquer justificativa para um pedido de indenização adicional.
Processo: AREsp 364.494
Veja o acórdão.
Outro caso que foi parar na Justiça envolveu um marceneiro que, em 2011, enquanto trabalhava na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP - Universidade de São Paulo, encontrou 15 quadros descartados no lixo da instituição.
Na época, ele questionou se as obras realmente estavam sendo descartadas como lixo. Guardou os quadros no local por alguns meses e voltou a perguntar sobre o destino deles. Sem obter outra resposta, resolveu levá-los para sua casa em Carapicuíba, na Grande São Paulo.