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    porto velho, sexta-feira 18 de abril de 2025

Bens e direitos digitais, além da herança, são essenciais

O evento tem a coordenação do ministro Luis Felipe Salomão, vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça, presidente da comissão...


CONJUR

Publicada em: 14/04/2025 10:17:13 - Atualizado

BRASIL: Bens e direitos digitais, além da herança deles, são essenciais na reforma do Código Civil. Foi isso o que afirmaram especialistas no assunto na última sexta-feira (11/4), no terceiro encontro da série “Reforma do Código Civil em Foco”, ocorrido na FGV do Rio de Janeiro. O anteprojeto da reforma do código foi apresentado em abril de 2024 por uma comissão de juristas criada pelo Senado.

O evento tem a coordenação do ministro Luis Felipe Salomão, vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça, presidente da comissão de juristas para a reforma do Código Civil e coordenador da FGV Justiça.

Salomão afirmou que em breve deve ser constituída uma comissão especial para analisar o anteprojeto no Senado. A expectativa é que o texto possa ser votado pelo Senado e pela Câmara dos Deputados ainda em 2025.

“O Código Civil é a constituição do cidadão comum. Ele cuida do dia a dia, desde antes do nascimento da pessoa natural e da pessoa jurídica, passando pelo nascimento, pelos contratos que ela realiza, pelas empresas que ela constitui, pelas uniões que ela desenvolve, até a sua morte, e para além da morte também, com a sucessão. É a norma da cidadania”, apontou o ministro.

Herança digital

A ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça, lançou luz sobre um dos temas mais complexos e ainda pouco regulamentados do Direito Civil contemporâneo: a herança digital, que é regulada pelo anteprojeto do novo Código Civil.

Falando remotamente, a magistrada compartilhou reflexões sobre os desafios jurídicos que emergem com o advento da era digital — especialmente no contexto de inventários e sucessões.

“O falecido não deixa senha, não nomeia administrador. E nós, juízes, temos o dever de entregar todos os bens aos herdeiros. Mas e quando esses bens são digitais, intangíveis e, por vezes, carregam segredos que podem causar dor?”, provocou Nancy.

Nova categoria de bens

A ministra destacou a ausência de uma legislação específica que trate dos bens digitais no Código Civil, no Marco Civil da Internet ou em outras normas vigentes. Ela defendeu que a era digital não só ampliou o espectro dos direitos da personalidade como também introduziu uma nova categoria de bens jurídicos — os bens digitais.

Esses bens, segundo ela, podem ser classificados como patrimoniais, com valor econômico mensurável (como criptomoedas ou arquivos valiosos); existenciais, ligados a direitos da personalidade (como diários, mensagens, fotos íntimas); e híbridos, com aspectos patrimoniais e existenciais simultâneos.

Andrighi foi além: propôs uma classificação quanto à transmissibilidade, dividindo os bens digitais em transmissíveis (que podem ser herdados) e intransmissíveis (que não devem ser repassados aos herdeiros por envolverem aspectos íntimos ou cláusulas contratuais de sigilo).

A ministra compartilhou dilemas concretos enfrentados por juízes em inventários digitais. “Cartas de amor a amantes desconhecidos, revelações sobre doenças, contratos sigilosos. Será que o falecido gostaria que isso fosse entregue à família?”, questionou.

Ela apontou que, por força do princípio da saisine — que assegura aos herdeiros o direito a todos os bens deixados pelo falecido — o juiz se vê diante de uma contradição: como cumprir esse princípio se parte da herança pode causar dor, humilhação ou violar a intimidade de terceiros?

Inventariante digital

Para lidar com a complexidade dos bens digitais, Andrighi sugeriu a criação de um incidente processual específico, denominado “incidente de identificação, classificação e avaliação dos bens digitais pós-morte”. Esse incidente, tramitaria de forma apensada ao inventário principal e permitiria, segundo ela, que os bens físicos e tradicionais fossem partilhados normalmente, enquanto os digitais passariam por análise própria.

Para isso, ela propõe a nomeação de uma nova figura técnica: o inventariante digital, que atuaria como perito judicial com acesso autorizado ao conteúdo digital do falecido. Esse profissional seria o responsável por elaborar um relatório minucioso sobre o que foi encontrado no ambiente virtual, permitindo ao juiz decidir, com mais segurança, o que deve ou não ser transmitido aos herdeiros.

Desafios contemporâneos

A desembargadora Jaqueline Montenegro, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, destacou a distância crescente entre a legislação civil em vigor e a realidade da sociedade contemporânea.

“Temos hoje um código que nasceu velho”, afirmou a magistrada, referindo-se à atual legislação civil, escrita na década de 1970 e promulgada apenas em 2002. Para ela, o Código já não oferece respostas adequadas às novas demandas sociais, tecnológicas e identitárias, resultando em insegurança jurídica e desafios práticos para juízes e operadores do Direito.

Jaqueline destacou que as transformações sociais — do empoderamento feminino às novas configurações familiares — exigem uma revisão profunda da legislação civil. Segundo ela, o Código Civil atual foi elaborado sob premissas ultrapassadas, como o casamento indissolúvel e a figura de uma mulher sem autonomia econômica. “Não somos mais a mulher do código de 2002”, pontuou.

Entre os pontos positivos da proposta de reforma do Código Civil analisada no evento, a desembargadora ressaltou o fortalecimento da autonomia da vontade no Direito Sucessório, a desburocratização dos procedimentos de família e o reconhecimento da capacidade civil de pessoas com deficiência. Ela também apontou avanços na regulação da reprodução assistida e nas questões envolvendo direitos digitais — embora tenha reconhecido que esses ainda trazem muitas “perplexidades”.

Direitos digitais

Para Jaqueline, é preciso distinguir, por exemplo, os direitos digitais existenciais — como perfis em redes sociais — dos patrimoniais, como contas monetizadas e criptomoedas, que hoje compõem o espólio de muitos cidadãos. “Estamos diante de uma nova realidade que o código antigo não prevê. Precisamos urgentemente estabelecer regras claras para o mundo digital pós-morte”, defendeu.

Apesar dos avanços apontados, a desembargadora reconheceu que há lacunas importantes no texto em discussão, como a ausência de um tratamento mais profundo para questões de gênero, famílias plurais e uniões poliafetivas. “A questão do poliafeto precisa ser enfrentada. Essa é uma realidade. Tirando a pauta de valores daqui ou de acolá, ela está posta”, declarou.

A magistrada destacou ainda o papel de juristas que se dedicam à reforma legal como uma forma de doação à sociedade. Ela concluiu afirmando que uma reforma ideal deve integrar valores constitucionais aos princípios clássicos do Direito Civil: eticidade, socialidade e operabilidade.


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