• Fundado em 11/10/2001

    porto velho, terça-feira 26 de novembro de 2024

Entenda os critérios usados por psiquiatras para diagnosticar o transtorno de TDI

Sintomas dessa condição podem ser confundidos com os de outras doenças psiquiátricas até mesmo por profissionais experientes


R7

Publicada em: 05/09/2023 08:11:49 - Atualizado

BRASIL: O caso de uma jovem que viralizou no TikTok ao dividir com os seguidores momentos de sua vida com o que seria TDI (transtorno dissociativo de identidade) alimentou uma série de discussões nas redes sociais nos últimos dias. A garota aparenta ter domínio sobre a troca das identidades, que seriam 18, segundo ela. Mas houve quem desconfiasse disso.

Outras pessoas que dizem ter o transtorno também têm ganhado atenção no TikTok.

Estima-se que, globalmente, o transtorno dissociativo de identidade afete entre 1% e 5% da população, sendo que quadros mais graves estão presentes em 1% a 1,5%.

A confirmação clínica do TDI, todavia, pode demorar. Um estudo publicado em 2014 na revista científica Psychiatry afirma que pacientes podem passar de cinco a 12,5 anos em tratamento antes de terem o diagnóstico — a tiktoker foi diagnosticada após cerca de um ano.

O DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), guia da Associação Americana de Psiquiatria, auxilia médicos na definição dos quadros com base em uma série de critérios. No caso do TDI, são cinco.

Segundo a publicação, "apenas uma minoria [dos pacientes com TDI] se apresenta ao atendimento clínico com alternância observável de identidades", algo que dificulta a identificação dos sintomas.

"O diagnóstico de transtornos dissociativos complexos (TDI ou transtorno dissociativo não especificado, TDNE) é desafiador por várias razões. Em primeiro lugar, os pacientes demonstram um alto nível de evitação e raramente relatam sintomas dissociativos espontaneamente, a menos que sejam questionados diretamente", afirmam, em um artigo na revista Frontiers in Psychology publicado em 2021, o psicoterapeuta Igor Jacob Pietkiewicz e colegas, do Centro de Pesquisa sobre Trauma e Dissociação, da Universidade de Ciências Sociais e Humanas SWPS, na Polônia.

Psiquiatras e psicólogos são orientados pelas diretrizes já estabelecidas a buscar por duas características: "alterações ou descontinuidades repentinas no senso de si mesmo e de domínio das próprias ações" e "amnésias dissociativas recorrentes".

Essa última envolve as perdas de memória do paciente durante o período em que a outra identidade ("alter") assume o controle da consciência.

"Dessa forma, indivíduos com transtorno dissociativo de identidade podem relatar que se encontraram de repente na praia, no trabalho, em uma boate ou em algum lugar em casa (p. ex., no armário, na cama ou no sofá, em um canto) sem lembrar como aí chegaram. A amnésia em indivíduos com transtorno dissociativo de identidade não se limita a eventos estressantes ou traumáticos; essas pessoas com frequência também não conseguem recordar os eventos cotidianos", explica o DSM-5.

Quem tem transtorno dissociativo de identidade frequentemente sofre de depressão, ansiedade, abuso de substâncias e outros problemas de saúde mental. Pode apresentar dificuldade em reconhecer ou esconder perturbações na consciência ou amnésia, salienta o manual.

Muitos relatam flashbacks dissociativos, em que revivem eventos traumáticos com perda de contato com a realidade e amnésia subsequente. Traumas, incluindo abuso na infância, são comuns, assim como automutilação e comportamento suicida.

A psiquiatra Fernanda Sassi, do Ambulatório dos Transtornos de Personalidade e do Impulso do IPq (Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP), explica que, "como o TDI tem muitos diagnósticos diferenciais mais frequentes, o paciente precisa ser acompanhado por um período" para que sejam descartadas outras condições.

O TDI pode ser confundido, por exemplo, com esquizofrenia ou outros transtornos psicóticos, transtorno de personalidade borderline, transtorno de estresse pós-traumático.

"O diagnóstico diferencial mais comum é o transtorno de personalidade borderline. O transtorno de personalidade borderline também está associado a extenso trauma, que frequentemente se manifesta com sintomas micropsicóticos e dissociativos", diz um artigo publicado neste ano, na biblioteca de recursos médicos online StatPearls, pelos psiquiatras Paroma Mitra (Escola de Medicina da Universidade de Nova York) e Ankit Jain (Instituto de Psiquiatria da Pensilvânia).

Outra possibilidade é que o paciente que diga sofrer de TDI tenha, na verdade, um transtorno que envolve a simulação de uma doença.

É possível fingir ter TDI?

"Na psiquiatria, quando alguém diz ter e tenta convencer as pessoas de que tem uma doença para ter ganhos secundários, chamamos de transtorno factício. Porque, mesmo que a pessoa não tenha a doença que diz ter, para usar tal recurso deve haver um sofrimento que merece ser ouvido", observa Fernanda.

A médica Julia Trindade, psiquiatra pós-graduada em neurociências do comportamento e membro da ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), ressalta que há pacientes que buscam atendimento para TDI, mas que não têm o transtorno.

"O que pode acontecer, inclusive tem alguns registros na literatura, é que o transtorno dissociativo de identidade, quando as pessoas vão ser avaliadas, na verdade é um transtorno factício."

O DSM-5 inclui como características do transtorno factício: a "falsificação de sinais ou sintomas físicos ou psicológicos, ou indução de lesão ou doença, associada a fraude identificada"; "o indivíduo se apresenta a outros como doente, incapacitado ou lesionado"; "o comportamento fraudulento é evidente mesmo na ausência de recompensas externas óbvias"; "o comportamento não é mais bem explicado por outro transtorno mental, como transtorno delirante ou outra condição psicótica".

Ainda de acordo com o guia médico, as pessoas com transtorno factício autoimposto "correm o risco de sofrer grande sofrimento psicológico ou prejuízo funcional ao causar danos a si mesmos e a outros", o que afeta familiares, amigos e profissionais de saúde.

O livro aborda ainda a simulação do transtorno dissociativo de identidade. As pessoas que assim o fazem tendem "a relatar de forma exagerada sintomas muito conhecidos do transtorno, como amnésia dissociativa, ao mesmo tempo que relatam bem menos sintomas comórbidos menos divulgados, como depressão".

"Indivíduos com transtorno dissociativo de identidade simulado tendem a não estar perturbados pelo transtorno e até mesmo gostar de 'tê-lo'. Por sua vez, aqueles com transtorno dissociativo de identidade genuíno tendem a sentir vergonha e a ficar arrasados com seus sintomas, não os relatando com frequência ou negando sua condição."

Em 1999, pesquisadores já haviam observado a dificuldade de distinguir sintomas simulados inconscientemente ("imitação de TDI") do chamado "TDI genuíno".

Em artigo publicado no The Journal of Psychiatry & Law, Nel Draijer e Suzette Boon destacam que uma minoria dos pacientes apresenta TDI genuíno e extravagante (apresentação dos sintomas marcada por comportamentos excessivamente teatrais, dramáticos ou provocativos) e personalidade histriônica coexistente (comportamentos dramáticos e busca de atenção).

Justamente por haver essa minoria, é possível que os casos em que os sintomas são simulados sejam confundidos até mesmo por profissionais experientes, segundo os autores.

Falsos-positivos

O estudo conduzido por Pietkiewicz identifica sinais de alerta para reconhecer casos falsos-positivos ou imitados de TDI, como a expectativa de confirmar o autodiagnóstico de TDI, sugestões anteriores de TDI sem avaliação clínica completa e familiaridade com os sintomas do transtorno por meio de leitura, vídeos ou grupos de apoio.

O psicoterapeuta afirma que até mesmo as diretrizes da OMS (Organização Mundial da Saúde), como a CID-11 (Classificação Internacional de Doenças, 11ª edição) e o próprio DSM-5 não fornecem instruções específicas para diferenciar os transtornos de personalidade dos transtornos dissociativos com base no relato de sintomas.

O artigo ressalta que há ferramentas limitadas para distinguir entre casos falso-positivos e falso-negativos de transtorno dissociativo de identidade, tornando a avaliação precisa e os procedimentos psicoterapêuticos apropriados um desafio.

"Autores que escreveram sobre pacientes diagnosticados de forma inadequada com esse transtorno utilizaram termos como 'simulação' ou 'TDI fictício' (Coons e Milstein, 1994; Thomas, 2001). De acordo com Draijer e Boon (1999), ambos os rótulos implicam que os pacientes simulam intencionalmente sintomas, seja por ganhos externos (benefícios financeiros ou justificação de suas ações em tribunal) ou por outras formas de gratificação (por exemplo, interesse de outras pessoas), embora em muitos casos sua motivação não seja totalmente consciente. Receber um diagnóstico de TDI também pode fornecer estrutura para o caos interior e experiências incompreensíveis, e estar associado à esperança e à crença de que é real. Por outro lado, erros de diagnóstico frequentemente resultam em planos de tratamento e procedimentos inadequados", diz um trecho da publicação.

Ainda conforme o estudo, pacientes que recebem um diagnóstico falso-positivo podem simular sintomas sem querer, muitas vezes devido à falta de plena consciência de suas motivações. Essas pessoas podem se autodiagnosticar com base em informações que encontram na internet, por exemplo, levando a relatos imprecisos dos sintomas durante as avaliações.

O trabalho, que contou com 85 pessoas que relataram níveis elevados de sintomas dissociativos, identificou endosso e identificação com o diagnóstico de TDI, a noção de partes dissociativas que justificam a confusão de identidade, o impacto da aquisição de conhecimento sobre TDI na apresentação clínica e a decepção ou raiva experimentada quando o TDI é descartado.





Fale conosco