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porto velho, sábado 23 de agosto de 2025
DA LAMPARINA AO TIKTOK: UM SÉCULO DE VIDA DE DONA VERÔNICA CORDOVIL
Arimar Souza de Sá
Quando a menina Verônica Cordovil nasceu, o século XX ainda era jovem — tinha apenas 25 anos — e vivia a primavera de seus dias. O destino, generoso, sorriu para Manaus, que se tornou palco do milagre da vida, testemunhando a chegada de uma criança destinada a atravessar os tempos e a varar o século com a firmeza das raízes e a delicadeza das flores.
Era 22 de agosto de 1925, e no coração da Amazônia brotava uma nova história: nascia Verônica Buzaglo, filha de Manoel e Raquel, descendentes de judeus vindos do Marrocos. Pequena no berço, mas imensa no destino. Para as irmãs, era Lindalva; para os íntimos, a sempre carinhosa Damor; para a vida, tornou-se simplesmente Verônica — nome que ressoaria por cem anos e seguiria iluminando gerações.
Desde cedo, seu espírito sempre foi inquieto e não conheceu repouso. Era como rio apressado em busca do mar. Ainda menina, já sonhava com três tesouros que pareciam simples: um trabalho digno, uma máquina de costura e uma casa. Conquistou todos eles — e muito mais.
Aliás, era daquelas que não se aquietavam. Com mãos habilidosas, laminou borracha nas fábricas, alinhavou botões às dezenas, cortou tecidos que ganhavam vida em suas costuras e virou uma espécie de faz-tudo das redondezas: Se alguém precisava de um corte de cabelo em formato de cuia, lá estava ela, deixando os barbeiros da época zangados. Se faltava quem ensinasse o bê-á-bá às crianças, era ela quem assumia a lousa. Se um vizinho adoecia, logo se transformava em enfermeira, aplicando injeções com firmeza e coragem. Era como uma mascote da princesinha do Amazonas, sempre presente, sempre pronta para servir. Não havia tarefa pequena, nem fardo pesado, nem muito menos tempo ruim para essa mulher que subia e descia os barrancos do rio com a mesma naturalidade com que cuidava de sua gente.
Ainda jovem, seus olhos presenciaram soldados partirem para a 2ª Guerra Mundial, deixando em Manaus corações em pranto. Para alguns deles, que mal sabiam escrever, foi Verônica quem deu forma às cartas de amor que cruzaram o oceano e levavam consolo às suas amadas.
Entre as lendas que cercam sua vida, dizem até o boto amazônico teria se encantado por sua beleza. Mas quem realmente a conquistou foi um boto matreiro — Raimundo Cordovil — que, esperto, não quis dar sopa ao destino e tratou de laçar aquele tesouro em 1946, casaram-se e viveram um amor que floresceu por mais de meio século. E como naquela época não havia televisão para distrair, logo vieram os rebentos: oito no total — Eliana, Eleida, Rita, Eimar, Edy, Elson e, na saudade eterna, Eneida e Edson. Hoje, o amor se multiplicou em 14 netos, 15 bisnetos e até a promessa já viva de tataranetos.
Em 1949, o casal chegou a Porto Velho trazendo consigo a coragem dos pioneiros. Moraram em tantos locais — Na Presidente Dutra, na Abunã, no Olaria, no Ipanema, na Sadia e na Jatuarana — que suas histórias se confundem com a própria cartografia da cidade, cujo território ainda engatinhava, com apenas três anos de criação.
Testemunharam os ciclos que moldaram a capital: da borracha ao garimpo, da madeira às usinas, e do Estado até o agro. Viram o fechamento do aeroporto do Caiari, a ponte sobre o Madeira nascer e acompanharam a transformação de uma capital que hoje se orgulha de chamá-la de sua.
Seus olhos atravessaram um século de mudanças: da lamparina à luz elétrica, do telégrafo ao fax, do rádio à internet, da TV em preto e branco às transmissões digitais. E não pensem que ficou para trás: Verônica aprendeu a usar o celular, navegou na internet e até se divertiu tirando onda postando no TikTok — prova de que juventude é chama da alma, está na mente e não contagem no calendário.
Mas a grandeza de Verônica não se mede apenas pelo que viu, e sim pelo que viveu. Foram quase 25 anos de dedicação na academia Marathma, cuidando do corpo, sem jamais esquecer de fortalecer o espírito nas orações. Durante a pandemia, quando o mundo parou, sua fé se ergueu como muralha, sustentando filhos, netos e bisnetos com a serenidade de quem confia plenamente em Deus.
Mas foi também na escola Carmela Dutra que deixou uma marca indelével. Por 30 anos dedicou-se ao trabalho, mas muito além disso: tornou-se guardiã da disciplina e do respeito. Eu mesmo, em minha adolescência como aluno, testemunhei sua presença inesquecível como inspetora. Dona Verônica era como um farol em noite de neblina, guiando os jovens na entrada da escola. Empunhando uma varinha na mão, bastava um leve toque ou gesto discreto para corrigir os mais inquietos. Sua simples presença fazia os engraçadinhos corarem, endireitarem a postura e silenciarem qualquer tentativa de bagunça. Havia nela autoridade sem dureza, firmeza sem aspereza, respeito conquistado sem levantar a voz — apenas pela força da presença.
Chegar aos 100 anos, Dona Verônica, permita-me, é mais que comemorar um aniversário: é erguer um monumento vivo à perseverança de uma mulher de fibra. A senhora é memória que respira na longevidade da vida. É testemunha de um século inteiro, árvore frondosa que, mesmo após tantas tempestades não se verga, continua oferecendo sombra, frutos e flores às gerações que dela brotaram.
E hoje, quando sua família e amigos se reúnem para esta celebração, não festejam apenas o tempo que passou, mas o amor que brota e permanece no íntimo de cada um que teve o privilégio da sua convivência.
O que aqui se oferece a Dona Verônica, não são apenas palavras e homenagens: são flores em vida, colhidas no jardim da existência, da gratidão e do afeto, que a senhora mesma plantou.
Que assim seja! AMÉM!
Muito obrigado!