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    porto velho, sábado 25 de outubro de 2025

ANPP: justiça negociada ou armadilha para o acusado?


Por Dr. Fadrício Santos

25/10/2025 12:59:12 - Atualizado

ANPP: justiça negociada ou armadilha para o acusado?

Por Dr. Fadricio Santos

O que é o ANPP?

Quando analiso o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), vejo nele uma das mais profundas transformações recentes do processo penal brasileiro. A previsão do art. 28-A do Código de Processo Penal não é apenas um detalhe legislativo: é a abertura do sistema à justiça negociada, em que a confissão do investigado e a imposição de condições substituem a tradicional denúncia. Isso representa uma ruptura com a lógica estritamente punitiva e coloca em pauta novos desafios para a advocacia criminal.

Na prática, o ANPP pode ser proposto quando o crime é cometido sem violência ou grave ameaça e a pena mínima é inferior a quatro anos. Para tanto, exige-se a confissão formal do investigado e o cumprimento de condições com reparar o dano, prestar serviços comunitários ou pagar valores pecuniários. Essa combinação de requisitos mostra que não estamos diante de mera liberalidade do Ministério Público, mas de um verdadeiro instituto jurídico com reflexos concretos na vida do cliente e na estratégia do defensor.

Pessoalmente, percebo que o grande atrativo do ANPP é a promessa de reduzir a judicialização de delitos de menor gravidade. O Estado economiza recursos e tempo, e o investigado se livra de um processo longo, desgastante e, muitas vezes, mais punitivo do que a própria pena. Contudo, essa eficiência aparente não pode nos cegar para os riscos embutidos na negociação, especialmente quando se exige uma confissão que, em determinados contextos, pode fragilizar o direito de defesa.

Ao lidar com casos em que o ANPP surge como opção, procuro lembrar que cada decisão tem impacto não apenas jurídico, mas também humano. Aceitar ou recusar o acordo significa definir o rumo da vida de uma pessoa diante do sistema penal. Por isso, nunca trato o instituto como algo meramente burocrático, mas como uma escolha estratégica, que precisa ser cuidadosamente fundamentada.

Vantagens e atrativos

Não posso negar que o ANPP traz benefícios evidentes. Ele oferece ao acusado a possibilidade de evitar a exposição pública de um processo penal, com todas as marcas sociais e psicológicas que esse estigma costuma carregar. É, em muitos casos, a oportunidade de virar a página sem arrastar por anos um processoque consome energia, tempo e recursos. Essa dimensão prática não pode ser desprezada.

Outro ponto que sempre destaco é a previsibilidade. Ao negociar um acordo, conheço de antemão as condições que serão impostas, algo raro em um processo penal, onde a incerteza reina. Isso me permite orientar meu cliente com maior segurança, apontando de forma objetiva o que ele terá de cumprir para encerrar o caso. Essa previsibilidade é um diferencial estratégico, que pode ser decisivo em contextos de fragilidade probatória contra o investigado.

Também observo que o ANPP pode estimular uma postura de responsabilização social. Ao reparar o dano ou prestar serviços à comunidade, o acusado contribui de alguma forma para restaurar a ordem violada. Embora não substitua uma verdadeira justiça restaurativa, essa dimensão prática pode ser positiva, especialmente em delitos patrimoniais ou de baixo potencial ofensivo.

Por fim, reconheço que o ANPP funciona como válvula de escape para um Judiciário sobrecarregado. Se bem aplicado, pode liberar tempo e recursos para que promotores e juízes se dediquem a crimes mais graves, sem abandonar a responsabilização dos delitos menores. Mas ressalto: isso só é vantajoso se o acordo não sacrificar garantias fundamentais, pois de nada adianta eficiência sem justiça.

Riscos e armadilhas para a defesa

Apesar das vantagens, costumo dizer que o ANPP pode se transformar em verdadeira armadilha. O ponto mais delicado é a confissão formal. Se o acordo não prosperar, esse reconhecimento do fato poderá influenciar o juiz na análise do processo. Mesmo que a jurisprudência determine que a confissão não seja usada de forma ampla, sabemos, na prática, o peso psicológico que isso exerce na convicção judicial. É uma vulnerabilidade que não pode ser ignorada.

Outro risco concreto é a desproporcionalidade das condições. Já presenciei situações em que o acordo impunha encargos mais severos do que a provável pena em caso de condenação. Nesses casos, o ANPP deixa de ser alternativa benéfica e passa a ser uma espécie de punição antecipada, travestida de acordo. Por isso, insisto que o advogado deve ser crítico e não aceitar passivamente as condições apresentadas pelo Ministério Público.

A seletividade é outra preocupação. Não são raros os relatos de que o ANPP é oferecido a alguns investigados e negado a outros em situações semelhantes, muitas vezes por critérios subjetivos. Isso fere frontalmente o princípio da isonomia e reforça desigualdades já tão presentes no sistema penal. Como advogado, sinto- me no dever de questionar esse tipo de prática, buscando no Judiciário a garantia de igualdade de tratamento.Também vejo o risco da banalização do instituto. Se for aceito de forma automática, sem reflexão crítica, o ANPP pode se transformar em mero expediente de burocracia penal, reduzindo o processo a uma negociação desprovida de garantias. É papel da advocacia evitar que isso aconteça, lembrando sempre que o acordo deve ser um benefício ao acusado, e não um instrumento de coerção.

Entendimentos recentes

A jurisprudência tem reforçado que o ANPP é um direito subjetivo do investigado, desde que preenchidos os requisitos legais. Esse entendimento do Supremo Tribunal Federal é fundamental, pois impede que o Ministério Público recuse de forma arbitrária. Para nós, advogados criminalistas, esse é um precedente valioso: nos dá munição para reagir diante de recusa imotivada.

O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, já decidiu que a negativa injustificada do ANPP pode gerar nulidade, abrindo espaço para controle judicial.

Isso significa que não estamos reféns da vontade da acusação; existe um espaço legítimo para atuação da defesa na busca pelo reconhecimento do direito ao acordo. Esse é um ganho importante para o equilíbrio processual.

Quanto à confissão, vejo que a jurisprudência ainda caminha em terreno instável. Embora haja o entendimento de que não se pode utilizá-la de forma irrestrita se o acordo não prosperar, cada caso traz nuances próprias. Isso exige cautela extrema do advogado, que precisa pesar o risco da autoincriminação contra os possíveis benefícios do acordo. Essa é, sem dúvida, uma das maiores tensões práticas do instituto.

Tenho claro que os tribunais estão apenas no início da construção de uma jurisprudência sólida sobre o ANPP. A cada decisão, novos contornos surgem, e cabe a nós, operadores do direito, acompanhar de perto essa evolução. O que está em jogo é a credibilidade de um instituto que pode representar avanço ou retrocesso, dependendo de como será consolidado.

O papel da advocacia

Na minha visão, o ANPP colocou a advocacia criminal em posição ainda mais estratégica. Somos nós os responsáveis por avaliar se o acordo é, de fato, vantajoso ou se esconde armadilhas. Essa avaliação exige conhecimento técnico e sensibilidade prática, pois não se trata apenas de aplicar a lei, mas de interpretar seus reflexos na vida real do cliente.

Assumimos, nesse contexto, o papel de negociadores. Não basta aceitar ou rejeitar a proposta: é nosso dever discutir condições, questionar desproporcionalidades e garantir que o acordo reflita um verdadeiro benefício.

Muitas vezes, isso significa enfrentar o Ministério Público e provocar a intervençãodo Judiciário. É nessa arena que a advocacia reafirma sua função essencial à justiça.

Também considero indispensável orientar o cliente de forma clara e transparente. Muitos investigados enxergam o ANPP como uma solução rápida, sem perceber os riscos que a confissão pode trazer. Cabe a nós explicar, de forma acessível, os prós e contras, para que a decisão seja consciente. Essa pedagogia jurídica faz parte do nosso compromisso ético com a defesa.

Por fim, acredito que a advocacia deve se colocar como guardiã das garantias constitucionais em meio à ascensão da justiça negociada. O ANPP não pode se transformar em atalho que sacrifica a presunção de inocência ou o devido processo legal. O desafio é enorme, mas é justamente nesse cenário que a advocacia reafirma sua relevância: garantir que a busca por eficiência nunca se sobreponha à proteção da liberdade.

Conclusão

O Acordo de Não Persecução Penal é, ao mesmo tempo, uma oportunidade e um risco. Reconheço nele o potencial de evitar processos desnecessários e reduzir danos para o acusado. Mas sei, pela prática e pela reflexão teórica, que pode se tornar armadilha se aceito sem análise crítica. Confissão, desproporcionalidade e seletividade são perigos reais, que exigem atenção redobrada da defesa.

Para mim, o ponto central é que o ANPP não deve ser visto como solução mágica. Cada caso exige uma avaliação singular, considerando provas, riscos e contexto. Só assim é possível decidir se o acordo realmente serve ao cliente. Essa decisão não pode ser tomada pelo investigado sozinho, mas precisa do olhar técnico e estratégico da advocacia.

A justiça negociada é um caminho sem volta, mas não pode significar abandono das garantias constitucionais. Nosso papel, enquanto advogados criminalistas, é equilibrar a eficiência buscada pelo Estado com a proteção da liberdade individual. Esse equilíbrio é o que mantém vivo o espírito do Estado

Democrático de Direito.

Assim, reafirmo: não é o ANPP que define o futuro do acusado, mas a forma como sua defesa é conduzida. Cabe a nós, advogados, separar quando o acordo é oportunidade legítima e quando se revela armadilha. É nessa escolha que reside a verdadeira missão da advocacia criminal: ser a última linha de defesa entre o cidadão e o poder punitivo do Estado.


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