• Fundado em 11/10/2001

    porto velho, domingo 26 de outubro de 2025

Porto Velho, a cidade que cresceu, mas esqueceu seus Fundadores

Faço aqui este registro de infância para lembrar os heróis de ontem e saudar o futuro desta cidade, respeitando o passado...


Redação

Publicada em: 26/10/2025 10:36:58 - Atualizado

foto - edição Rondonoticias

Crônica de Fim de Semana

Porto Velho, a cidade que cresceu, mas esqueceu seus Fundadores

Arimar Souza de Sá

Antigamente em Porto Velho era assim: os homens brincavam de brincar, davam-se o direito de sorrir, deixavam-se invadir pela alegria de viver. Subiam em mangueiras, corriam descalços e andavam de peito aberto pelas ruas, descobrindo-se astros de seus próprios espetáculos.

Havia mais doçura. As pessoas gostavam umas das outras, sem mandar a conta depois sem precisar vender a alma. Acordava-se cedo, fazia-se o sinal da cruz, rezava uma Ave Maria. O café da manhã, tomado em família, era também uma oração — e o sorriso da esperança servia de bênção para começar o dia.

Aos domingos, a igreja mais próxima se enchia de fé. Assistíamos à missa, confessávamos, comungávamos, e até a bênção se pedia ao padre. Havia algo de sagrado no simples gesto de se reunir.

Nas principais ruas da cidade, andava-se em procissão e em cantorias para louvar a Deus. A mais linda delas era a de Corpus Christi. As famílias armavam altares nas portas das casas e, à medida que o cortejo passava, entoava-se com fervor:

“A nós descei, Divina Luz,
Em nossas almas acendei,
O amor, o amor de Jesus!”

Tempos justos. Tempos em que se cria — e se acreditava.

Aos domingos, sob a batuta do Maestro Louro, a banda da Guarda Territorial tocava no coreto da Praça Marechal Rondon. Depois, os homens se encontravam nas praças, trocavam um dedo de prosa no Café Santos, ali na esquina das ruas Sete de Setembro e Prudente de Morais e a vida seguia seu curso lentamente.

Hoje, andando por Porto Velho, é natural imaginar que esses homens deixaram suas pegadas nas esquinas, nas calçadas e no coração das mulheres. Homem que é homem morre, mas deixa saudade — e exemplo.

Faço aqui este registro de infância para lembrar os heróis de ontem e saudar o futuro desta cidade, respeitando o passado, lembrando do passado, homenageando os homens e mulheres que, com sacrifício e dignidade, moldaram a história desta terra.

Mas é impossível não sentir o peso leve — e doce — da saudade. Porto Velho já foi mais serena, menor e, por isso mesmo, mais humana. Havia o cheiro do sereno das madrugadas, o apito da Maria-Fumaça rasgando o silêncio, o pregão das feiras no Cai N’Água. O café era coado na hora, com aroma de afeto. E antes de sair para o trabalho, o costume sagrado: cumprimentar o vizinho pelo nome. Hoje, vizinhos de porta sequer se olham — quanto mais se cumprimentam.

As avenidas correm mais do que a própria vida. E quem vem de fora pouco imagina que, por debaixo do asfalto, ainda pulsa a memória de uma cidade erguida à força de braços e de fé. Onde hoje há prédios, havia quintais. Onde há muros, antes havia cercas de amizade.

Lembro-me — como se fosse agora — das tardes de domingo na Baixa do União: o futebol improvisado na poeira, os meninos descalços sonhando ser craques, e as mães chamando do portão para o jantar. Era um Porto Velho de vozes misturadas, de sotaques vindos de toda parte, mas que se entendiam no idioma universal da esperança.

O tempo, esse rio sem margens, levou e arrastou para o silêncio o Cine Resk, o Lacerda e o Brasil; os bailes do Ipiranga e do Ferroviário; as retretas da Praça Jonathas Pedrosa; a fonte luminosa da Praça Presidente Vargas; e até os serões de conversa na beira do Madeira.
Foram-se os bancos de madeira e os bancos de praça — e com eles, parte da doçura das conversas sem pressa.

As ruas mudaram de nome, mas ainda guardam ecos antigos. Miguel Chakian, Rogério Weber, Anísio Grécia... são nomes que respiram lembranças dos meninos da minha época e das famílias que plantaram os alicerces desta cidade, nascida entre o barro e o sonho. Cada tijolo que se ergueu trouxe consigo uma história de coragem.

Hoje, poucos sabem quem foram Walmar Meira, José Calixto de Medeiros, Francisco Paiva, Júlio Pantoja, Aldê Cantanhede e tantos outros — homens que ajudaram a construir o impossível. Ainda assim, suas sombras permanecem: nas árvores da Rogério Weber, no Mercado Central, nas pedras gastas da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, nos sinos que já não tocam, mas continuam a ecoar na alma de quem ama esta terra.

Talvez o maior desafio de Porto Velho não seja o progresso, mas a memória. Crescer sem lembrar é como navegar sem bússola — a cidade avança, mas perde o norte. É preciso ensinar aos novos que antes dos postes havia lamparinas; antes do concreto, havia barrancos; e antes da pressa, havia fé e coragem.

Perpetuar memórias é um dever de cidadania. É justiça com aqueles que, com suor e coragem, transformaram o passado em espaço para o futuro. E o que de pior pode acontecer a um povo é perder a memória da terra, do tempo e da luta — tornando-se herdeiro de lembranças sem sentido, num caminho de desamor e desagregação.

Porto Velho, diga-se de passagem, é uma cidade que pouco reverencia seus filhos e fundadores. Vê-se muita gente recebendo as mais altas honrarias do município sem ter deixado um só gesto de serviço à terra; títulos imerecidos que transformam gratidão em conveniência e puxa-saquismo.
Parece que caminhamos sem alma, fazendo média com quem pouco merece, e esquecendo os que deram nome, sangue, suor e história a esta cidade.

E se um dia perguntarem o que era o Porto Velho antigo, diremos sem titubear: era o lugar onde o tempo andava de bicicleta, e o coração da cidade batia no compasso das ondas do Madeira.
Era o lugar onde o homem era reconhecido não pelo que possuía, mas pelo seu brasão, pelo que fazia — e, sobretudo, pelo que deixava no coração do outro.

Hoje, ao olhar o pôr do sol sobre o rio Madeira, penso que os pioneiros ainda vivem — não nos nomes das ruas, mas na saudade que insiste em morar na memória dos que ficaram. Porto Velho pode ter mudado, mas seu espírito segue de pé, como as velhas mangueiras da Rogério Weber, guardando o segredo dos que amaram esta terra mais do que a si mesmos — e partiram sem sequer serem lembrados.

Porque a memória é o oxigênio da história — e quem esquece o passado, asfixia o futuro.

Lamentavelmente, AMÉM!


Fale conosco