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porto velho, sábado 23 de novembro de 2024
BRASIL: Sancionada com vetos pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a Lei 14.843/2024, que alterou as regras da saída temporária da prisão, dispostas na Lei de Execução Penal (LEP), deixou uma lacuna sobre o período máximo para concessão do benefício, ou seja, o tempo que o preso pode passar fora da cadeia caso seu regime assim permita.
Com o vácuo legislativo, esse espaço será preenchido pelo juiz, que, em cada caso, vai estabelecer quando o preso deve voltar para o presídio.
Ainda que Lula tenha vetado a supressão da saída temporária, a lei entrou em vigor com a total revogação do artigo 124 da LEP, cuja redação era a seguinte: “A autorização será concedida por prazo não superior a 7 (sete) dias, podendo ser renovada por mais 4 (quatro) vezes durante o ano”.
Mesmo com os vetos do presidente, a nova lei é considerada problemática por uma série de fatores, em especial a corrosão de um instituto criado durante a ditadura militar para a ressocialização de presos, a popular “saidinha”. E a lacuna deixada aberta pelos legisladores vai impulsionar o poder discricionário dos juízes, que podem seguir jurisprudências consolidadas ou julgar por analogia.
O buraco legislativo entrou na lista das críticas à norma sancionada por Lula. A volta do exame criminológico, tido como inviável por estudiosos do assunto, encabeça essa relação. A obrigatoriedade do exame deve, na prática, dificultar a progressão de regime e inflar ainda mais o sistema carcerário brasileiro, que hoje restringe a liberdade de mais de 900 mil pessoas.
Quarenta anos após a aprovação da LEP, avaliam advogados criminalistas entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico, a lei regrediu e, além de prejudicar a ressocialização, deixou um espaço que, se não for preenchido por algum tipo de regulação, atribuirá ao juiz da execução um poder que ele nunca teve. Além disso, criou-se o risco de precedentes controversos na matéria.
“Com exceção da saída para frequentar curso profissionalizante ou de instrução, que segue pelo prazo necessário para o cumprimento das atividades (art. 122, § 3º), a saída temporária para visita familiar ou atividades de convívio social não possui mais a expressa delimitação da quantidade de dias por saída e o seu número durante o ano”, alerta Tiago Rocha, do escritório Bottini & Tamasauskas.
A delimitação do tempo para a saída temporária, diz Rocha, terá uma carga discricionária do magistrado que “deveria seria evitada”.
“Para que não haja uma dessintonia na fruição desse direito, que é previsto na Lei de Execução Penal com um prazo específico, provavelmente os juízes permanecerão aplicando esse prazo dos sete dias, renovado por mais quatro vezes ao ano”, diz Renato Vieira, sócio do Kehdi Vieira Advogados e presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).
“Se não houver um disciplinamento novo, legislativo, ou os juízes não seguirem com o que já vem sendo decidido desde 1984, o próprio artigo 122 (que regula as saídas temporárias, mantido pelo governo Lula) não vai ter nenhuma eficácia”, afirma Vieira.
A pressa do legislador, sempre pressionado por questões sociais quando o tema é segurança e sem o devido estudo do tema, gerou lacunas “inexplicáveis” como essa, diz Pedro Beretta, sócio-gestor do Hofling Sociedade de Advogados. “Certamente (o vácuo) terá um impacto gigante no atual sistema carcerário brasileiro — que, como é sabido, não é detentor dos melhores resultados.”
Em relação às consequências desse vácuo, ele diz que “a volta e o tempo de permanência deverão ser avaliados por cada juiz, simples assim”.
Pamela Torres Villar, sócia do Salomi Advogados, diz que, conforme determina o Decreto-Lei 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), os juízes devem, em caso de omissão legislativa, decidir de acordo com “a analogia, os costumes e os princípios gerais do Direito”.
“Desse modo, inexistindo balizas legais que estabeleçam por quanto tempo o benefício poderá se estender ou, mesmo, se há ou não limites à sua concessão, caberá, em um primeiro momento, ao magistrado, no caso concreto, aplicar a solução que entender adequada, a qual pode coincidir com os parâmetros estabelecidos pela lei anterior”, argumenta a advogada.
Renato Vieira, por sua vez, acredita que o fato de o governo ter vetado o fim das “saidinhas” é um sinal de que o retorno do preso ao convívio em sociedade deve ser tratado como era antes.
“As razões do veto passam por uma necessária reintegração, ou seja, não se pode tornar sem efeito a previsão da saída temporária. Então, a única forma de não se tornar sem efeito a saída temporária é, no mínimo, seguir o que já vinha sendo previsto, ou lhe conferir, inclusive, maior amplitude.”
Para Fabio Fajolli, professor e mestre em Direito Penal pela PUC-SP, há o perigo de o vácuo legal ser preenchido por decisões muito distintas entre si. “Corre-se o risco de surgirem precedentes controversos, ou casos similares com prazos de saída absolutamente diferentes. Em outras palavras, cria-se insegurança jurídica.”
A lei sancionada, diz o advogado, muda pouco a prática do que já ocorre. E ele sustenta que a suposta insegurança causada pelas saídas temporárias é “ilógica”.
“Quem faz jus ao benefício da saída temporária são os condenados que cumprem pena em regime semiaberto. Assim, esses indivíduos já têm ‘livre acesso’ à sociedade, vez que podem sair para trabalhar durante o dia.”