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porto velho, sábado 23 de novembro de 2024
BRASIL: Em resposta à decisão do Supremo Tribunal Federal que descriminalizou o porte de maconha para consumo próprio, o Congresso tenta, por meio de uma proposta de emenda à Constituição, criminalizar a posse ou o porte de qualquer droga. Na prática, a chamada PEC Antidrogas tem poucas chances de prosperar. Constitucionalistas apontam possível violação a cláusulas pétreas — algo já apontado no julgamento pelos próprios ministros do STF e que permite a invalidação de uma emenda constitucional.
Diferentemente de outras investidas do Congresso contra o Supremo, a ideia da vez é alterar a Constituição — e não criar leis — para contrariar o entendimento da Corte. Embora o STF não possa barrar a tramitação da proposta, nada impede que os ministros invalidem uma PEC com base em parâmetros da própria Constituição.
É o que pode acontecer com PEC Antidrogas, conforme apontam constitucionalistas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico. Isso porque, no recente julgamento, os ministros do STF já reconheceram que a criminalização do porte de maconha para consumo ofende a privacidade e a intimidade do usuário.
De acordo com o constitucionalista Lenio Streck, emendas constitucionais não têm “imunidade hermenêutica”. Já o advogado Georges Abboud, professor de Direito Constitucional, lembra que o STF “tem décadas de experiência com o controle de constitucionalidade de ECs”.
Uma emenda constitucional pode ser invalidada pelo STF de vários modos. Uma das possibilidades é a existência de vícios formais ou processuais, Eles são, por exemplo, problemas nas votações durante sua tramitação no Congresso.
O artigo 60 da Constituição prevê as condições para que uma PEC seja proposta e aprovada. Ela precisa, por exemplo, passar pelas duas casas legislativas, ser votada em dois turnos e conseguir três quintos dos votos.
“Quaisquer irregularidades demonstradas, desde a legitimidade de quem propõe a emenda constitucional até os requisitos exigidos para a sua discussão e votação, serão reconhecidas como vícios processuais e importarão na declaração de inconstitucionalidade ‘formal’”, aponta a constitucionalista Vera Chemim.
Emendas constitucionais também podem ser invalidadas por vícios materiais, ou seja, relativos ao seu conteúdo. Nesses casos, segundo Abboud, um parâmetro usado em especial é o parágrafo 4º do artigo 60 da Constituição.
Esse dispositivo lista as cláusulas pétreas, ou seja, os temas que não podem ser discutidos em PECs: a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos poderes; e os direitos e garantias individuais.
Assim, no geral, os vícios materiais ocorrem quando a proposta tende a violar cláusulas pétreas (que não podem ser alteradas) da Constituição.
Um dos principais precedentes neste sentido é a ADI 939, julgada em 1994, na qual o STF declarou a inconstitucionalidade material de trechos da EC 3/1993, que tratava do antigo Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira (IPMF).
Na ocasião, os ministros constataram, entre outras coisas, que a norma previa uma exceção ao princípio constitucional da anterioridade tributária, tido como uma garantia individual do contribuinte. Por isso, a conclusão foi de que houve violação a cláusula pétrea.
A PEC 45/2023 altera o inciso LXXX do artigo 5º da Constituição e prevê que tanto a posse quanto o porte de qualquer quantidade de drogas será considerado crime.
Segundo o advogado constitucionalista e professor Raphael Sodré Cittadino, caso a PEC Antidrogas seja aprovada e seu texto seja contestado no STF, “nem todos os argumentos” usados pela Corte no julgamento que descriminalizou o porte de maconha para consumo poderiam ser reutilizados. Isso porque “nem tudo o que está na decisão está correlacionado com alguma cláusula pétrea”.
Assim, caso o STF pretenda declarar a inconstitucionalidade do texto, “o fará com base na alegação de violação a direitos e garantias fundamentais, necessitando detalhar quais seriam tais direitos e garantias fundamentais violados”.
No julgamento sobre a maconha, o ministro Gilmar Mendes, relator do caso, argumentou, dentre outras coisas, que a criminalização ofende a privacidade e a intimidade do usuário.
“Como o direito à privacidade e à intimidade está no rol dos direitos e garantias individuais, sim, neste caso esse é um dos argumentos que pode ser usado, em tese”, avalia Cittadino.
Abboud acredita que “o texto da PEC é suficientemente lacunoso e desproporcional em termos de penalização excessiva para que o STF aplique o mesmo raciocínio” do julgamento da descriminalização e “declare a inconstitucionalidade” do texto da PEC 45/2023 caso aprovado e levado à sua análise.
Nesse caso, segundo ele, a Corte teria por base especialmente o inciso IV do parágrafo 4º do artigo 60 da Constituição, que fixa os direitos e garantias individuais como cláusulas pétreas.
Para o constitucionalista, “a PEC onera de forma excessivamente agressiva condutas tidas como inofensivas e socialmente estigmatizadas — que foi, nos parece, justamente o mote do julgamento do STF”. Com isso, a proposta “limita o campo de escolhas meramente pessoais dos indivíduos”.
Lenio Streck entende que “os mesmos argumentos usados pelo STF poderão estar presentes na eventual ação que questionar a eventual aprovação da PEC 45/2023”.
Além disso, na sua visão, se o Congresso aprovar a PEC Antidrogas, “estará fazendo backlash que viola até mesmo a relação harmônica que deve haver entre os poderes”.
Ele conclui: “Se cabe ao STF dizer por último o que é a constitucionalidade de uma lei, a última palavra na democracia é de quem é o guardião da Constituição e da constitucionalidade das leis”.
Para Chemim, por outro lado, os argumentos usados no julgamento que descriminalizou o porte de maconha “não necessariamente” seriam suficientes para invalidar o texto da PEC Antidrogas.
“É preciso ponderar o fato de que o Congresso Nacional representa a ‘vontade da maioria’ em um regime democrático”, ressalta ela.
Os parlamentares envolvidos com a PEC desejam criminalizar o porte e a posse de qualquer droga “sob a fundamentação de que esta é a vontade da ‘maioria’ da sociedade brasileira e que o tema remete a uma questão relevante de saúde pública, especialmente voltada aos jovens e crianças”.
Se essa for a decisão do Congresso, Chemim afirma que isso “não necessariamente afrontará” o direito à intimidade e à vida privada, “uma vez que o pressuposto é o de que há um interesse comunitário que se sobrepõe aos direitos fundamentais individuais”.
Caso a questão fosse novamente levada ao STF, “a decisão final repousaria na forma de interpretação das normas constitucionais e na possibilidade de haver ou não uma afronta ao seu núcleo, enquanto cláusula pétrea”.
A constitucionalista explica que os direitos fundamentais são princípios constitucionais. Uma técnica de ponderação é escolher o princípio “que se adapta mais àquela situação”.
Nesse caso, há dois princípios: um direito fundamental individual e um direito coletivo. “O caminho correto”, na visão dela, seria ponderar qual deles prevalece. A ponderação a ser feita é: até que ponto a criminalização “afronta o direito à intimidade e à vida privada no sentido de esvaziar a sua essência”?
Com isso, “se houver uma concordância de que há interesse comunitário” — ou seja, de que o tema é de saúde pública e afeta jovens e crianças —, isso “se sobreporia ao direito individual à intimidade e à vida privada”, diz Chemim.
“A relevância do interesse comunitário relativamente aos direitos fundamentais individuais permitirá a restrição destes, atendendo-se ao princípio da proporcionalidade e da razoabilidade, tendo em vista que tais direitos remetem aos princípios constitucionais”, assinala.
Ela ainda ressalta que essa ponderação deve ocorrer “independentemente de o STF constatar uma violação à cláusula pétrea”. Segundo a constitucionalista, a discussão sobre o interesse comunitário “teria que estar já inerente a esse raciocínio”.
Por fim, Chemim diz que, “do ponto de vista prático, não se vislumbra aquela afronta ao direito fundamental à intimidade ou à vida privada”. Isso porque o próprio STF decidiu que o porte de maconha para consumo pessoal continua sendo um “ato ilícito”, proibido em local público. Uma eventual discussão do texto da PEC seria apenas para definir se tal ato voltaria a ser considerado crime, com aplicação de sanções penais.