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porto velho, sexta-feira 21 de fevereiro de 2025
BRASIL: A descriminalização do porte de maconha para consumo próprio pelo Supremo Tribunal Federal foi só o primeiro passo para a superação da política de guerra às drogas, segundo os especialistas que participaram do seminário “A Política Nacional Sobre Drogas: Um Novo Paradigma”, promovido pela revista eletrônica Consultor Jurídico e pelo site Brasil 247. Eles valorizaram a reação da corte ao analisar a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, mas citaram uma série de problemas relacionados ao tema que permanecem intocados pelo Estado. Entre eles, o racismo do sistema de segurança pública, o encarceramento em massa e a falta de regulação do uso medicinal da cannabis.
O evento, promovido nesta terça-feira (18/2) no Hotel Royal Tulip, em Brasília, contou com a participação de 30 debatedores. A lista inclui advogados, médicos, autoridades do Judiciário, integrantes do governo federal e representantes de ONGs que atuam no Brasil. Especialistas de Portugal, Colômbia e Equador também colaboraram com as discussões.
Os convidados foram distribuídos em seis painéis temáticos: “O significado da decisão do STF sobre porte da cannabis para uso pessoal”; “A cannabis medicinal no Brasil, suas aplicações e potenciais benefícios para o sistema de saúde”; “As experiências internacionais”; “A implementação da decisão do STF pelo sistema de Justiça”; “O combate ao racismo e ao encarceramento em massa”; e “Os impactos econômicos e sociais da decisão do STF”.
O diretor da ConJur, Márcio Chaer, e Leonardo Attuch, Tereza Cruvinel e Dhayane Santos, jornalistas do Brasil 247, revezaram-se na mediação dos debates.
Ao abrir o primeiro painel, o ministro decano do STF, Gilmar Mendes, defendeu a atuação da corte ao criar critérios para a distinção entre traficantes e usuários de maconha. “O Supremo não reconheceu um direito subjetivo à entorpecência, não impediu a apreensão de drogas pela polícia, não tornou o uso de drogas lícito. Ele segue antijurídico. Apenas trocou a esfera penal pela esfera da saúde pública”, afirmou o magistrado.
No julgamento, concluído em junho de 2024, o STF estabeleceu a quantidade de 40 gramas, ou seis pés da planta, para diferenciar usuários de traficantes. A quantidade foi um meio termo entre os 60 gramas propostos pelo ministro Alexandre de Moraes e os 25 gramas defendidos pelo ministro Cristiano Zanin.
O tema chegou ao tribunal por meio do Recurso Extraordinário (RE) 635.659 (Tema de Repercussão Geral 506), que questionava o dispositivo da Lei de Drogas que estabelece penas para quem “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização”.
Teoricamente, as penas previstas na norma não deveriam levar o usuário à prisão. Porém, a falta de critérios objetivos permitia que usuários fossem classificados como traficantes. A quantidade estabelecida vale até que o Congresso legisle sobre o assunto.
A falta de uma regulamentação da maconha para fins medicinais foi um dos problemas mais citados ao longo do seminário.
O assessor especial do Ministério da Saúde responsável pela cannabis medicinal, Rodrigo Cariri, afirmou que a pasta já reconhece os benefícios dos derivados de maconha em condições clínicas como dores crônicas, doenças desmielinizantes (que afetam a transmissão de sinais nervosos) e epilepsia.
“Do ponto de vista científico, são inegáveis os benefícios. A questão é como isso pode ser construído no território nacional”, afirmou. Segundo Cariri, o ministério mapeou 29 projetos no Congresso que tratam de aquisição, cultivo ou distribuição de derivados da maconha.
Enquanto os representantes do governo focam no que tem sido feito para a incorporação dos derivados, quem atua pela causa da liberação do uso aponta inconsistências no processo.
O advogado André Barros, que é um dos autores da representação que garante a Marcha da Maconha, criticou a Resolução 327/2019 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A norma em questão estabelece que a produção de medicamentos derivados deve ser feita a partir de cannabis importada.
“É uma vergonha, do ponto de vista do capitalismo, do direito da concorrência, haver uma resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária que impede nós, brasileiros, de plantarmos maconha para fabricarmos insumos para concorrer, no nosso país, com as empresas estrangeiras.”
Em sua fala, o ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira, demonstrou otimismo. Ele acredita que a tramitação de um projeto de lei de sua autoria (PL 399/15) sobre o tema pode avançar durante a gestão de Hugo Motta (Republicanos-PB) como presidente da Câmara. Segundo Teixeira, Motta “acha ruim” que o uso medicinal não esteja regulamentado no país.
O viés étnico-racial das apreensões e condenações por suposto tráfico de drogas foi outro ponto recorrente no seminário, extrapolando o painel dedicado ao assunto.
“A gente sabia que o critério de encarceramento sempre foi preto pobre (considerado) traficante e branco rico (considerado) usuário”, afirmou o presidente da Associação Brasileira de Cannabis e Cânhamo Industrial (ABCCI), Luís Maurício, ao elogiar o “pontapé inicial” do STF.
Para Nathalia Oliveira, da Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD), falta a corte “avançar em decisões capazes de corrigir o efeito dessa política (de guerra às drogas) sobre a população negra”.
O advogado da ONG Conectas Direitos Humanos, Gabriel Sampaio, afirmou que não é possível entender o impacto da política contra as drogas no sistema de Justiça Criminal e no encarceramento em massa sem entender o papel do racismo na sociedade brasileira. “Só houve decisão no STF porque a discussão foi racializada. Muita gente apoia, mas muita gente não suporta e denuncia o quanto isso é desigual (a Justiça Criminal) e reproduz o racismo.”