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porto velho, sexta-feira 17 de outubro de 2025
O STF iniciou nesta quarta-feira, 1º, o julgamento conjunto da Rcl 64.018 e do RE 1.446.336, que tratam do enquadramento de modelos contratuais fora da CLT, em especial no setor de plataformas digitais.
A sessão, conduzida pelo presidente da Corte, ministro Edson Fachin, foi dedicada à leitura do relatório e às sustentações orais de advogados e amici curiae.
Na véspera, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, se manifestou contra o reconhecimento de vínculo empregatício entre motoristas e aplicativos.
Para ele, a imposição do regime celetista afronta a livre iniciativa e contraria precedentes do Supremo que admitem formas contratuais alternativas à CLT.
O julgamento prosseguirá nesta quinta-feira, 2, com a conclusão das sustentações orais.
Rcl 64.018
A reclamação foi ajuizada pela Rappi Brasil contra decisões da 4ª turma do TRT da 3ª região e da 2ª turma do TST.
A empresa sustenta que tais decisões teriam desrespeitado entendimentos já fixados pelo STF na ADPF 324, na ADC 48 e no Tema 590 da repercussão geral.
O ponto central da reclamação é o reconhecimento (ou não) do vínculo de emprego entre motociclistas entregadores e as empresas de aplicativos que intermediam os serviços de entrega de mercadorias.
O tema está na origem de centenas de processos e reclamações no país, envolvendo justamente a caracterização ou descaracterização do regime celetista em tais contratos.
A empresa afirma que atua como uma plataforma tecnológica de intermediação, permitindo que usuários do aplicativo façam a oferta e a procura de bens e serviços. Defende, portanto, que não se trata de relação de emprego tradicional, mas de uma dinâmica de mercado típica da economia digital.
Rappi
Representando a Rappi, o advogado e ex-ministro do TST, Márcio Eurico Vitral Amaro, defendeu que não se aplica à empresa o regime da CLT, uma vez que se trata de mera plataforma de intermediação.
Segundo o advogado, a Rappi "não vende nada, não comercializa nada e não transporta ninguém", limitando-se a conectar digitalmente consumidores e fornecedores. Ele destacou que os entregadores atuam de forma autônoma, com veículos próprios, sem a subordinação típica de uma relação de emprego.
Márcio Amaro contestou a tese da chamada "subordinação algorítmica", utilizada por instâncias da Justiça do Trabalho para justificar o vínculo. Para ele, essa interpretação extrapola os limites do conceito jurídico, mesmo em face das transformações tecnológicas.
Entregador
Em nome do entregador, o advogado Mauro de Azevedo Menezes, da banca Mauro Menezes & Advogados, sustentou que a Rappi não pode ser considerada mera fornecedora de tecnologia, mas sim uma empresa de transporte de mercadorias, como ela própria se apresenta publicamente.
Para o causídico, a instrução conduzida pela Justiça do Trabalho demonstrou elementos concretos de subordinação, como o fato de ser a plataforma quem define os valores cobrados, os trajetos e os clientes atendidos, além de aplicar sanções aos entregadores que recusam corridas, chegando até ao descadastramento.
Citou ainda que a avaliação constante por parte dos consumidores mantém o trabalhador sob permanente controle e que o art. 6º da CLT já prevê a validade de meios tecnológicos para caracterizar a subordinação, o que confirma a tese da chamada "subordinação algorítmica".
O advogado destacou que a Justiça do Trabalho, dotada de competência constitucional para analisar tais vínculos, tem instrumentos para identificar fraudes e não pode admitir que empresas utilizem a aparência de autonomia para mascarar relações de emprego.
Trouxe, ainda, exemplos estrangeiros: Espanha, Itália, França, Reino Unido e diversos países latino-americanos já aprovaram leis reconhecendo a possibilidade de vínculo em plataformas digitais. Lembrou que a União Europeia editou, em 2024, a diretiva 2.831, que presume relação de trabalho quando houver indícios de direção ou controle exercidos pela plataforma.
Mauro Menezes alertou, por fim, para os impactos sociais e previdenciários da "plataformização", afirmando que a migração em massa de trabalhadores para fora do regime celetista compromete o financiamento da Previdência, do FGTS, do Sistema S e de políticas públicas essenciais.
Segundo ele, a liberdade econômica não pode se sobrepor ao sistema de proteção social e, assim como a liberdade de expressão, deve encontrar limites diante de abusos.
Representando a Fiergs - Federação das Indústrias do Estado do RS, o advogado Eugênio Hainzenreder Jr. defendeu que a análise sobre vínculos em plataformas digitais deve ser feita com prudência, para não engessar novos modelos de trabalho.
Destacou que a livre iniciativa deve ser equilibrada com o valor social do trabalho e pediu a procedência da reclamação para cassar a decisão que reconheceu vínculo de emprego.
Pró-motoristas
Pela CUT - Central Única dos Trabalhadores, o advogado Ricardo Quintas Carneiro, da banca LBS Advogadas e Advogados, sustentou a improcedência da reclamação, afirmando que a atividade de motoboys é regulamentada pela lei 12.009/09 e não se confunde com a figura do transportador autônomo.
Criticou a "uberização", que desarticula a identidade coletiva da categoria e transfere custos e riscos ao trabalhador, lembrando que a CLT já prevê a subordinação telemática e contratos intermitentes.
Em nome da Associação dos Trabalhadores por Aplicativo e Motociclistas do DF, o advogado Gustavo Ramos, da banca Mauro Menezes & Advogados, afirmou que excluir genericamente o vínculo de emprego em plataformas digitais enfraquece a proteção constitucional dos arts. 7º e 8º.
Ressaltou que motoristas enfrentam controle algorítmico, longas jornadas, acidentes frequentes e remuneração precária, e concluiu que não se pode criar uma subcategoria de trabalhadores sem direitos.
RE 1.446.336
O recurso foi interposto pela Uber e envolve diretamente a possibilidade de reconhecimento de vínculo empregatício entre motoristas e a empresa.
Segundo a plataforma, há atualmente mais de 10 mil processos em tramitação no país discutindo a mesma questão, o que demonstra a relevância e o impacto do julgamento.
O caso concreto começou com ação movida por uma motorista que buscava o reconhecimento do vínculo. Em 1ª instância, o pedido foi julgado improcedente.
O trabalhador recorreu, e o TRT da 1ª região reformou a sentença, reconhecendo a relação de emprego e condenando a empresa ao pagamento das verbas trabalhistas correspondentes.
A Uber levou a discussão ao TST, que manteve a decisão de segunda instância.
A Corte Trabalhista entendeu que a empresa deve ser enquadrada como empresa de transporte e não apenas como plataforma digital. O tribunal apenas afastou a condenação ao pagamento de indenização por danos extrapatrimoniais, preservando o restante da condenação.
No STF, a Uber sustenta que o entendimento firmado pelo TST viola o princípio constitucional da livre iniciativa e ameaça um "marco revolucionário" no setor de mobilidade urbana, com potencial de inviabilizar a continuidade de sua atividade no Brasil.
Uber
Na sustentação oral pela Uber, a advogada Ana Carolina Andrada Arrais Caputo Bastos afirmou que o modelo garante "autonomia com direitos", equilibrando proteção a motoristas, consumidores e empresa.
A defesa destacou que a intermediação tecnológica não é novidade no Direito e citou possíveis impactos negativos de um enquadramento pela CLT, como queda de R$ 45,9 bilhões no PIB e aumento da pobreza entre motoristas.
Segundo dados apresentados, a maioria dos motoristas é homem negro, de 41 anos, com ensino médio completo, que trabalha em média 21 horas semanais.
A advogada também ressaltou que 68% dos usuários pertencem às classes C, D e E e que o serviço contribui para a mobilidade urbana e para a redução de acidentes de trânsito.
Ana Carolina invocou precedentes do STF para afastar o vínculo empregatício e pediu segurança jurídica diante de mais de 40 mil ações trabalhistas contra a empresa, lembrando investimentos de R$ 1 bilhão no Brasil e a função social do contrato.
Motorista
Pela motorista, o advogado José Eymard Loguercio, da banca LBS Advogadas e Advogadas, ressaltou que o julgamento não trata de modelos de negócio, mas da efetivação dos direitos fundamentais do trabalho, que considera indissociáveis da democracia
Lembrou que a liberdade econômica encontra limites na valorização do trabalho humano e criticou a utilização ampliada da ADPF 324 e do Tema 725 como justificativa para excluir trabalhadores da proteção da CLT.
Segundo o advogado, há no caso concreto da motorista robusta prova de subordinação algorítmica, reconhecida pelas instâncias trabalhistas e detalhada em voto do TST.
Apontou que a ausência de regulação não pode servir para criar uma zona de não responsabilização, lembrando que escolhas empresariais geram consequências jurídicas.
Loguercio destacou que a OIT e a União Europeia já avançam no reconhecimento de que o trabalho em plataformas deve ser tratado como contrato de trabalho, com presunção de vínculo quando houver elementos de direção e controle.
Para ele, a ausência de regulação atinge sobretudo os mais vulneráveis, ampliando desigualdades. Concluiu citando Beverly Silver, ao afirmar que o lucro só tem legitimidade quando subordinado ao bem-estar social, e pediu que o STF reforce a proteção trabalhista para evitar a criação de uma massa de trabalhadores sem direitos.
AGU
O advogado-Geral da União, Jorge Messias, defendeu no STF a tese de "autonomia com direitos" para motoristas de aplicativos, afirmando que, embora a relação não se enquadre no modelo clássico da CLT, esses trabalhadores não podem ficar desassistidos de proteção jurídica e social.
Citando Fernando Pessoa, ressignificou o verso "navegar é preciso" para afirmar que "trabalhar é preciso, mas viver também é preciso", destacando a necessidade de equilibrar inovação tecnológica com dignidade humana.
Messias propôs a fixação de direitos mínimos, como contribuição previdenciária, seguro de vida e invalidez, representação sindical, piso remuneratório e espaços de descanso, lembrando que apenas 23,6% dos 1,5 milhão de motoristas atuantes em 2022 contribuíam para a Previdência.
Concluiu com a metáfora de que não se pode permitir que "alguns estejam nos botes com colete de salva-vidas e outros totalmente à deriva".
DPU
Pela DPU, o defensor Claudionor Barros Leitão afirmou que o ponto central do julgamento é saber se a fluidez das novas formas de trabalho pode suprimir a proteção normativa da CLT. Defendeu a prevalência do princípio da realidade, com análise concreta da autonomia, da assimetria entre as partes e do grau de subordinação.
Segundo ele, a situação vivida pelos motoristas de aplicativo - com baixa remuneração, longas jornadas e pouco poder de negociação - leva naturalmente ao reconhecimento do vínculo de emprego.
Citou pesquisas que indicam queda de renda e alto índice de acidentes: levantamento da Fundacentro e da UFBA apontou que 58,9% dos motoristas e entregadores já sofreram acidente, adoecimento ou violência no trabalho.
Pela InDrive, a advogada Lorena Ribeiro Palheta Frederico sustentou que o modelo de negócios da empresa se diferencia dos demais aplicativos, pois o motorista negocia diretamente com o passageiro o valor da corrida, recebendo o pagamento sem intermediação financeira da empresa, que cobra apenas uma taxa fixa de até 12%.
Nesse formato, segundo explicou, não se configuram os elementos do vínculo de emprego, já que não há subordinação, habitualidade, pessoalidade ou onerosidade.
Pela 99, o advogado Saul Tourinho Leal, da banca Tourinho Leal Drummond de Andrade Advocacia, afirmou que os motoristas atuam em modelo alternativo já reconhecido pelo STF em precedentes sobre terceirização e parcerias.
Ressaltou que a CLT e a Justiça do Trabalho permanecem relevantes e que cabe ao Congresso, por meio do PLP 12/24, definir as regras específicas do setor.
Em nome do IAPE - Instituto dos Advogados Previdenciários, o advogado Hélio Gustavo Alves defendeu que os motoristas devem ser considerados contribuintes individuais, conforme a lei 8.212/91 e o art. 442-B da CLT, podendo atuar para várias plataformas simultaneamente.
Enfatizou que a lacuna atual está na ausência de recolhimento previdenciário e sugeriu que as empresas assumam a obrigação de destinar parte das taxas cobradas diretamente ao INSS.
Já pela Associação Brasileira de Liberdade Econômica, o professor Luciano Benetti Timm afirmou que a maioria dos motoristas e consumidores rejeita a aplicação da CLT, preferindo a flexibilidade.
Citou estudos que apontam renda média entre três e seis salários mínimos e o fato de mais da metade não atuar de forma exclusiva, alertando que a imposição de vínculo encareceria o serviço, como ocorreu em Nova Iorque.
Pró-motoristas
Na defesa dos trabalhadores, pela ABJD - Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, o advogado Nuredin Ahmad Allan ressaltou que a discussão não se limita ao vínculo de emprego, mas envolve a definição do modelo de sociedade.
Para ele, a livre iniciativa e a liberdade econômica não podem ser tratadas como valores absolutos, devendo ser compatibilizadas com a dignidade da pessoa humana, a solidariedade e a justiça social.
Pela SINDTAPP - Sindicato dos Motoristas de Transportes por Aplicativo do Pará e pela Força Sindical, a advogada Solimar Machado Corrêa criticou a "autonomia ilusória" atribuída aos motoristas, lembrando que, ao tentar exercer liberdade fora da plataforma, eles são punidos com desligamento.
Informou que assembleias realizadas em 21 estados mostraram posição unânime dos motoristas de quatro rodas a favor de direitos básicos, propondo a criação de um contrato intermitente plataformizado que assegure férias e 13º salário sem inviabilizar o modelo de negócio.
Pela CUT - Central Única dos Trabalhadores, a advogada Meilliane Pinheiro Vilar Lima, da banca LBS Advogadas e Advogados, argumentou que o trabalho em plataformas digitais está distante do conceito de trabalho digno, sendo marcado por precarização, endividamento e controle algorítmico, configurando uma forma de "servidão moderna".
Defendeu que o STF garanta um patamar mínimo de proteção social, em conformidade com a CF e com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.
Já pela CNTSS/CUT - Confederação Nacional dos Trabalhadores em Seguridade Social, o advogado Raimundo César Britto Aragão destacou que, assim como ocorreu no passado com as trabalhadoras domésticas, ainda persiste resistência em reconhecer direitos a categorias vulneráveis.
Citou o exemplo de Vitória/ES, onde motoristas atuam com carteira assinada, para afirmar que o problema não é o serviço, mas a forma precarizada de execução, cabendo ao STF corrigir distorções históricas e enfrentar o que chamou de "servidão moderna".
Tema 1.389
O julgamento não se confunde com o Tema 1.389, relatado pelo ministro Gilmar Mendes, que trata da licitude da pejotização, em geral - envolvendo a contratação de pessoas jurídicas e autônomos em substituição ao regime celetista, além de questões como a competência da Justiça do Trabalho, o ônus da prova e a identificação de possíveis fraudes contratuais.
Ele permanece suspenso nacionalmente desde abril, por determinação do decano da Corte.